segunda-feira, 15 de março de 2004

Ponto de mutação


Falar que o aparato tecnológico desenvolvido nos últimos cinqüenta anos tem alterado completamente as formas do homem encarar o mundo e a história já é um clichê. A exagerada capacidade de captação e reprodução de momentos tem tirado da história a sua possibilidade especulativa que a permeou pela maior parte dos séculos de racionalidade. Não precisa nem ser uma ocasião ou um lugar "importante" para estar submetido a algum artifício de fixação de imagem e/ou som. A tecnologia despreza a imprevisibilidade, desdenha arrogante do nosso espanto ante o inesperado. Dêem boas vindas ao Big Brother.

Foi preciso uma grande sensibilidade e um impulso bastante visionário para George Orwell lançar a noção do "Big Brother" em 1984 (lançado em 1948). Na época, pouca gente entendeu que o tal "Olho que tudo vê" não era uma pessoa, nem tinha por trás de sua intricada rede uma mente vil que responderia por sua impertinência. Com o olhar de anarquista e ex-soldado, Orwell mirou certo na tecnologia e previu o status "divino" (a onipresença) que ela viria ganhar, numa época que ele considerou ser o "futuro".

11 de março na Espanha. Explosões em trens deixam mortos e feridos. Comoção internacional, discursos inflamados, implicações políticas. Dentro de sua limitação temporal, a mídia utiliza-se do momento posterior ao fato para nos reportar ao momento da tragédia. É com isso que estamos acostumados, tem sido assim desde sempre, desde antes de haver a própria mídia. O que diferencia este fato dos demais ocorridos ao longo da história é a presença de uma moça dentro de um dos trens, que no exato momento das explosões tinha sua ligação de celular gravada numa secretária eletrônica, há quilômetros dali.

É isso que a tecnologia faz: ela não nos dá margem à especulações. Não temos mais o luxo de imaginar, em pensar como terá sido aquele acontecimento, aquela tragédia. Sempre vai ter alguém ou algo gravando; haverá uma foto de um turista que aparece uma semana depois ou como nesse caso, um telefonema. Já estará ali diante de nós uma face nem que seja mínima do momento flagrado, da qual toda nossa capacidade de abstração será subordinada. Seremos apenas espectadores, levados a negligenciar o "impulso imaginativo" - receberemos imagens, não mais as criaremos.

Nas últimas décadas enfileiram-se "flagrantes": a morte de Kennedy (e a morte de Lee Oswald, seu assassino), a explosão da Challenger, atentados a figuras influentes, o 11 de Setembro. Um verdadeiro circo de horrores promovido pela presença das câmeras ligadas "na hora certa e no lugar certo".

Podemos imaginar como deve ter sido a ocasião em que o Arquiduque Francisco Ferdinando fora alvejado por um estudante na Sérvia, detonando a Primeira Grande Guerra. Podemos imaginar também como foi a sangrenta deposição da família real russa, ou ainda, a ocasião da morte de Julio César, esfaqueado por todo o Senado romano. Mas, no tocante à contemporaneidade, o exercício especulativo tem sido e será posto de lado em favor da simples recepção de sons e imagens gravadas. Este será o fim da mitificação, das distorções, da inexatidão, da abstração, enfim, do homem como o conhecíamos.



16 comentários:

Luís Venceslau disse...

Filmaram os aviões derrubando as torres gêmeas e a gente entendeu como tudo aconteceu. Gravaram a conversa telefônica da vítima do trem espanhol e a gente pôde experimentar o momento. O que ainda não conseguiram foi fotografar a doença de um desses assassinos pra a gente entender melhor.

Raskolnikov

Luís Venceslau disse...

... ... ........ . .. ..... Bem, de certo que a (oni)presença da câmera e do flash "em cima do lance" tem o condão de registrar fielmente os fatos e servir como prova para a construção da História. Entretanto, ainda assim precisaremos de tempo e especulações para "digerir" o que vemos e ouvimos; não acredito - pelo menos por enquanto - que somos automatos. Talvez não nos preocupemos em imaginar como as torres cairam - isso eu mesma vi da sala do meu apartamento em Belém -, mas ocupamo-nos em buscar as razões, vislumbramos as consequências, raciocinamos sobre os meios. Admiravel Mundo Novo. ......... .. . .... .

NN

Luís Venceslau disse...

E tu és meu orgulho :-*

NN

Luís Venceslau disse...

é uma pena td isso acontecendo...:(

Bridget Jones | Homepage

Luís Venceslau disse...

Sempre que eu leio o texto do Benjamim me pergunto se a perda da aura é bom ou ruim...

Helber

Luís Venceslau disse...

post grande do carai! Pense noc computadores q travam de repente na próxima vez q escrever um assim.

ailton

Luís Venceslau disse...

Grande post, no duplo sentido, Luís! A única coisa que o homem não vai perder, ao contrário, vai aumentar, é o seu caráter de abstrair. Você se refere à "realidade ampliada" e, claro, com uma imagem mostrando um fato não há muito o que pensar sobre o que teria ocorrido. Mas quando alguém vê/ouve algo assim, se transporta para o fato (lembra da telerrealidade) o que não deixa de ser uma abstração. Na "realidade virtual", a abstração é o poder!

Zabella

Luís Venceslau disse...

Lu, seu nerdão!! Escreve texto pequeno pô.. preu ler entre as garfadas do meio dia. =P

PauLa

Luís Venceslau disse...

"Sorria, vc está sendo filmado!"
Telefones grampeados, computadores monitorados... Um bombardeio d imagens e informações q nos insensibilizam e nos privam do saudável exercício da imaginação.
E ainda vai ter gente fazendo pose pra foto, ou exibindo cartazes c/ singelos dizeres como "É nóis na fita!" e afins...
Xêro!

Farfalla | Homepage

Luís Venceslau disse...

Deu até uma angústia...:-)

Susy | Homepage

Luís Venceslau disse...

agora eu li. Não parece contigo. Vou mandar Guilherme dar umas orradas em tu e trocar as provas!

ailton

Luís Venceslau disse...

porradas, foi o q quis dizer

ailton

Luís Venceslau disse...

Detenham Helber: ele quer acabar o "Crápula"

NN

Luís Venceslau disse...

Respondendo as perguntas enqto vc ñ posta d novo: encontrei teu blog através do d Miss Lexotan (q por sinal, comentou logo depois d vc, viu q vc tinha passado por lá e só falou coisa boa a seu respeito).
Sobre a religião, às vezes acho q perdi a fé, então me lembro d q, se estou d pé a despeito d tds as burradas q já fiz, é pq tem alguém muito especial q me ama d+ - situações difíceis são um excelente exercício d esperança em Deus.
Algo para fazer... Huuuummm... Melhor q sexo, só se ele vier acompanhado d amor (acho q no fundo sou uma romântica incorrigível!)
Defeitos... Acho q ser capaz d reconhecê-los é uma dádiva, e querer corrigi-los me faz pensar q eu ainda tenho jeito.
Sobre "Crime e Castigo", vc deve ser a terceira pessoa q aguarda o término da leitura para trocar idéias a respeito. Quem sabe ñ é uma boa desculpa p/ nos conhecermos? Espero ñ decepcionar... =P
Xêro!

Farfalla | Homepage

Luís Venceslau disse...

Bom fds procê. xero!

Bridget Jones | Homepage

Luís Venceslau disse...

CADÊ A PORRA DA IMPARCIALIDADE? Se fosse eu, já estaria fudido, jogado às traças, feito um rejeitado de guerra! Fodam ele, gurias!

ailton | Homepage

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...