quinta-feira, 28 de julho de 2005

Graças ao acidente


O barulho de gente correndo por entre um matagal é inconfundível. Sons abruptos, impacientes, aparvalhados.

O afinco deles se via nas camisas empapadas de suor, mas ainda assim haviam perdido a moça de vista. Abriam picadas, viravam esquinas, estacavam, praguejavam. Ela passara como um raio, descalça, deixando as lágrimas pro vento e o cheiro do cabelo no ar. Ainda lhes ouvia, era como se estivessem bem no seu pescoço, arfando, salivando, irracionais. Não carregava nada além do pudor e do vestido sem nada por baixo. Suas pernas formigavam quando se meteu debaixo de uns arbustos ignorando os espinhos e os insetos. Tremendo de pavor, agarrou as pernas contra o peito certa de que se fosse pega não seria poupada. Sem querer ceder aos quebrantos da consternação, sua língua se repuxava pra garganta sempre que a mera possibilidade da violação passava pela sua mente como uma brisa desconcertante.

Os mosquitos já vinham trazendo a noite quando viram um pé delicado pra fora de um monte de mato. Mal desabotoaram as calças tiveram que desistir. Alguns ainda comemoravam quando um deles notou dois furinhos naquele calcanhar pálido.

quarta-feira, 20 de julho de 2005

Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Destempero


Outra vez você armou escarcéu
E escancarou aos quatro ventos
O que não fizemos a quatro mãos
E os sentimentos

Nos levaram ao estardalhaço:
Pegamos o estandarte,
Nos demos o braço
E fomos com o bloco, a banda
E o palhaço

Lavamos a roupa suja
E os retalhos das nossas colchas, das fantasias
Que não realizamos
Atiramos pratos e jarros ao invés dos confetes
Que sequer jogamos
E gritamos de ódio porque de prazer
Nunca gritamos

Não precisamos pintar os rostos porque de hematomas
Já nos pintamos
Nossos narizes vermelhos como os dos palhaços
É porque só choramos

E o espetáculo espatifado chega ao fim
Quando a fanfarra encerra a melodia
Com povo dolorido cantando alegre o nosso samba,
Que é deles também,
Já sob o sol do outro dia:

"Eu sei que você não tem medo de ir além,
Eu sei que você faz isso pelo nosso bem..."

quinta-feira, 14 de julho de 2005

Prazeres e prazeres


- Eu acho que eu não sou normal, não...

- Por que diz isso?

- É que tem uma coisa... Tem uma coisa que me dá um prazer maravilhoso, mas eu sei que é muito bizarro...

- O que é? Pode dizer... Você pode confiar em mim. - Sorriu.

- Não sei... Acho que você vai me achar um louco...

- Diz.

- Hum... É... Eu adoro ouvir o barulho da ratoeira.

- Como é?

- O barulho, aquele estalo que dá quando ela pega o rato, aquele "clac!"... É quase... É quase... Orgasmático! É sublime!

- Que coisa...

- Eu adoro... No meio da noite, aquele silêncio todo e de repente... "Clac!". Fico doidinho. Isso me remexe por dentro... É sério...

- Nossa! - E soltou uma gargalhada.

- É, mas não é pra espalhar, não... Já basta você sabendo das minhas taras...

- Não se preocupe, querido. Seu segredo vai ficar guardadinho comigo.

Passaram ainda algum tempo juntos e se despediram. Ele foi para casa dormir. Ela também, mas só conseguiria se antes acariciasse as urtigas que criava num vaso, enquanto olhava a foto de um ex-namorado.

quarta-feira, 6 de julho de 2005

Salvação


A notícia da guerra chegou com uma lufada de tristeza à cidade. Carretas chegavam vazias e voltavam para a capital com dezenas de recrutas para lutar sabe Deus onde. Soldados ainda sem barba na cara partiam, enquanto o contingente de mães desoladas crescia no lugar. O barulho dos aviões passando baixo e as senhoras de luto antecipado transformavam a melancolia numa peste contagiosa.

Naquela tarde Raimundo fora com os amigos se alistar na representação local do exército. Quando voltou, já de noite, entrou à surdina: não queria dar de cara com a tristeza da mãe. Jantou no escuro. Quando passou pro banheiro, viu no quintal a brasa do cigarro da mãe entre as ramagens do pé de caju. Foi dormir.

No meio da madrugada a cidade foi surpreendida por um crepitar impetuoso. Era um incêndio exatamente no pequeno quartel da guarnição, onde estavam todos os registros dos soldados que seriam apanhados nos dias seguintes.

Três da tarde. A pavorosa carreta estava estacionada na praça a espera dos recrutas. Em volta dos oficiais estava todo o lugarejo, liderado justamente pelo representante das forças armadas na cidade:

- É melhor os senhores irem embora e não voltarem mais. Vocês já trouxeram tristeza demais pra essa gente.

A carreta verde partiu e nunca mais foi vista por aqueles lados. A multidão exalou um cheiro doce de gratidão que amenizou um pouco o mormaço.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...