quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Sinal dos tempos II

O tempo parou por exatos três segundos quando o primeiro semáforo instalado na cidade se soltou da base raquítica onde estava preso e atingiu em cheio a cabeça do Prefeito Iguaraci. Foi daquela forma bisonha que uma era chegara a termo diante dos olhos de toda uma cidade. Tão grande o alívio que a pancada causara que a população metera-se num estupor sem precedentes em suas histórias pessoais e coletivas. Enfim, não tinha mais volta, finalmente aqueles tempos de mandados e desmandos, de invencionices e decretos, havia se encerrado de uma vez por todas. E tudo graças àquela obra do próprio prefeito, que num de seus delírios febris, decidiu colocar um semáforo na praça de uma cidade que só tinha dois automóveis, fora o ônibus que fazia a linha para a capital.

Iguaraci se dizia um visionário, um amigo do progresso. De fato, ele era até bem moderno numas coisas, e totalmente atávico em outras. Suas modernices começavam nas duas mulheres que mantinha, sem contar uma terceira, de quem era desquitado. Mas em meio a tanto futurismo, seus arroubos despóticos e o prazer com o poder pleno lhe colocavam no mesmo patamar de um dono de mercearia. Pois foi na capital que os semáforos revelaram-se para Iguaraci como um sintoma cabal do progresso, mais do que um amontoado de prédios, mais do que o rádio. “O ordenamento do trânsito não é só uma questão de conforto: é uma necessidade dos novos tempos”, passou dias repetindo para si a frase como se fosse uma oração com poder de lhe tornar, quem sabe um dia, deputado. Após esvaziar os cofres da prefeitura, mandou instalar o bendito sinal numa das ruas que margeavam a praça da cidade, mais habitada por carroças de jumentos do que qualquer outra coisa no mundo.

No dia da inauguração, Iguaraci sonhou que estava preso num cubículo escuro, agouro que não deu ouvidos. Às exatas três horas da tarde, o prefeito encerrou o discurso e fez sinal para o rapaz responsável pelo motor a diesel que fornecia energia elétrica pela cidade. O moleque mexeu nas traquitanas, puxou as alavancas, ligou os interruptores e o semáforo não acendeu. Irado, Iguaraci correu lá no maquinário e, vendo que o diesel do motor acabara na noite anterior, tratou de improvisar outro discurso, um apêndice que fingiu ter esquecido, pontuado por achaques de desespero e muxoxos infantis. E corria de um lado para o outro, atarantado, gesticulando, pulando, querendo convencer mais a si mesmo do que a cidade de que a instalação do semáforo não tinha sido uma cagada total. Foi nesse momento que se ouviu um tinido em meio aos urros patéticos do prefeito e, como num filme mal montado, o semáforo que estava lá em cima estava agora cá embaixo, sobre a cabeça esmagada do homem com o dedo em riste. Os assessores, confusos com o fim prematuro da solenidade, só tiveram iniciativa suficiente para atalhar com o encerramento da inauguração previsto no cerimonial. “Viva o prefeito”, gritaram. E a cidade, numa salva de palmas, respondeu: “Viva!”.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Sinal dos tempos

O mundo está virando um balneário em dia de domingo: quente, lotado, barulhento, e com um cheiro irritante de protetor solar.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O encontro

Antes de entrar no ônibus, Camila se deteve para olhar ainda mais uma vez para Ricardo. Era um típico olhar de adeus, maciço, profundo e silente, que durou a infinidade de uns poucos segundos. Tudo só aconteceu graças àquele encontro universitário, e agora, estavam para sempre condenados a levarem o peso da lembrança daqueles três dias fugazes. Já na ansiedade da chegada, os dois se bateram enquanto cada um ia para o seu dormitório. Na manhã seguinte, na saída de um auditório, se viram novamente, meio de longe, e o sorriso mútuo foi inevitável. À noite, acabaram ficando próximos durante o show de forró que acontecia depois do dia de palestras. Sem disfarçar, ela começou a rir do jeito que ele se balançava, e assim abriu espaço para a abordagem.

“Você sabe dançar isso?”, ele abriu os braços, e ela se aproximou dizendo que ele estava quase lá. Ela tinha morado uns anos no Ceará, e aquele ritmo não lhe era totalmente estranho. No fim, riram mais que dançaram, e daí não se desgrudaram mais. Parecia que aqueles dois dias não passariam nunca, e eles não teriam mais que voltar para as suas vidas onde a ausência do outro seria, agora, quase intolerável.

Mas o dia da partida chegou, e naquelas horas inflamadas, acabaram se beijando com a relutância de quem sabe que por mais que ande, vai dar mesmo é com a cara na parede. Só que Camila tinha um pé na inconseqüência, “toma meu telefone, a gente mantém contato”, e ela anotava, apressada, atrapalhada com as lágrimas que já queriam cair. Mas Ricardo, contrariando tudo, inclusive a si mesmo, tratava apenas de colocar pelo menos os seus pés no chão, pois para ele, aquele final de semana não poderia durar para a vida toda. Era melhor achar que Camila tinha sido só um devaneio, um sonho incomum, um fôlego frenético encarnado numa morena ruiva que não tinha medo de cruzar o país dentro de um ônibus, nem muito menos de dançar com um estranho. Já próximo de casa, Ricardo fazia força para encarar tudo aquilo como apenas uma pista de uma vida perfeita. Uma vida que só teria ao lado da garota perfeita, ao invés da sua noiva, que lhe esperava no mesmo sofá em que viam sempre as mesmas novelas.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

É desespero, é desespero...

Eu tento, mas não consigo ficar imune ao frenesi que toma conta de Campina por esses dias. Isto porquê estamos na última semana da campanha para prefeito, que terá o seu desfecho no próximo domingo. Se os ânimos seguirem se inflamando na proporção que vieram até aqui, é capaz de haver morte até a data do sufrágio. As tropas federais já foram acionadas. As casas já estão enfeitadas com a cor simpatizante. Nos bares, nas praças, nas cozinhas, não se fala em outra coisa. Futuro versus passado, novidade versus tradição. É Cabeludo pra lá, é Gordinho pra cá, o filho do Doutor Vital versus o filho do Taxista Zuzu. Os candidatos batem boca na rua, se desafiam. As denúncias pululam. A TV é saturada por um festival de "imagens estarrecedoras", "notícias de arrepiar" e "episódios lamentáveis". A turba vai ao delírio, salivando. As apelações vão chegando a níveis burlescos. O governador se licencia do cargo para apoiar o candidato do seu partido. Os cabos eleitorais rodam a cidade oferecendo quantias em troca dos números dos títulos de eleitor. Os carros de som perturbam a paz dos escritórios. As crianças agitam bandeiras. Os velhos se impacientam. E eu não vejo a hora de chegar a sexta-feira para poder fugir disso tudo.

Campina Grande é diferente de João Pessoa até nisso. Aqui na serra todo mundo meio que vive ligado em 220 volts, é um constante acirramento, todo dia é dia de Treze e Campinense, independente de ter jogo, independente de ser futebol. A própria geografia inspira isso, é toda instável, tem sempre uma ladeira, uma subida forte, uma descida brusca, diferente das emoções planas e sem sobressaltos que tomam conta dos ares da capital. Que é onde eu vou estar neste domingo, mas não sem ficar de olho nos boletins da apuração depois das 17 horas.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Welcome to the jungle

A cara que o senhor Antunes fez na frente do computador foi a coisa mais engraçada que Paulo tinha visto na vida.

- Como você conseguiu isso?

- Digamos que alguém lá em cima gosta muito de mim. Ou alguém lá em baixo, vai saber.

Não dava pra saber mesmo. No dia que fora demitido, Paulo encontrara um celular no chão do elevador. Só uma semana depois, num acesso de tédio, é q foi vasculhar o celular e quase teve um enfarto quando deu de cara com várias fotos de Juliana. As fotos não teriam nada demais se não fossem da filha do seu ex-patrão fazendo um strip-tease em 32 fotos altamente lúbricas. Na hora não viu outra destinação para aquelas fotos: era o que lhe daria seu emprego de volta.

- Não sabia que tinha dom para chantagem. – Disse um amigo.

- Nada. Questão de sobrevivência, saca?

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Infausta solução

Estelita estava mais desamparada do que no dia em que sua mãe morreu. Foi assim que estacara naquela encruzilhada. Por trás do esquecimento dos quatro grandes montes, se ouviu o grito rouco do seu pai quando dera pela sua falta. Estelita havia corrido descalça, com a roupa do corpo, em busca de um amor desatinado demais para se realizar. Quando chegou à praça, ouviu as botas dos homens do seu pai já bem perto. Não valia mais a pena ir.

Até poderia valer se à sua frente não estivesse Carminha com o seu séqüito de cupinchas armados para caça. Iam atrás da cabrocha que estava de namorico com seu marido. O dito que prometera o mundo para Estelita, e que agora fugia sozinho, deixando mala, Carminha, Estelita, e tudo mais para trás. De uma amiga lhe arrancaram o nome, e também pararam atônitos quando viram a própria vir correndo bem na direção deles. Sob o comando de Carminha, armaram a mira, foi quando Estelita parou.

Estelita ainda quis acreditar que havia uma saída, pela rua lateral, talvez. Isto se lá não estivesse o bando de Felinto que acabara de entrar na cidade disposto repor-se de mantimentos e, na saída, sacudir até o último vintém dos moradores. Pela cara deles, não havia polícia no mundo que pudesse lhes impedir. Muito menos os doze soldados que agora se punham de frente pra eles formando, então, junto com os homens de Carminha e os do pai de Estelita, um quadrilátero cujas principais linhas de tiro se entrecruzavam no ponto em que a cabeça da menina estava.

Um silêncio típico daqueles que antecedem desgraças se esparramou pela praça, e o vento, que açoitava os ouvidos, parou como se prendesse a respiração. Eram quatro e meia da tarde, e quando Robério, o homem mais novo de Felinto, se alvoroçou para dar o primeiro de uma série interminável de disparos, uma pedra do tamanho de um caminhão veio zunindo do céu e, com um estrondo improvável, abriu uma cratera que engolira metade da cidade.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

É só teatro

E eis que finalmente assisto a um show do Teatro Mágico. Minto. 70% do show, cheguei atrasado, mas ainda assim deu pra sacar qual era a deles. A banda, o grupo, ou trupe, sei lá, é uma das coisas mais badaladas do mundinho (metido a) indie nos últimos tempos, e tamanho o comentário, não perderia a chance de vê-los gratuitamente. Comentário este longe de qualquer consenso. Ultra-polarizado. Ou amam ou odeiam, sem meio-termo, o que é mais um atrativo.

Pra não dizer que não conhecia nada deles, lembro de ter visto uma matéria sobre eles na TV falando do show e da histeria das fãs. Histeria essa que pude comprovar ao vivo. O mais estranho não era nem o grau de devoção das fãs, era esse grau de devoção ser em Campina Grande. Ao que me consta a banda é de São Paulo, não toca no rádio, nem vai no Raul Gil. Eles têm Fã-clube em Campina, pensei, abobalhado. Pois é, quem ainda duvida do poder da Internet hoje está mais por fora do que talo de macaxeira.

Mas vamos ao show. De cara, uma má impressão. Sempre entre uma música e outra o vocalista com a cara pintada intercalava um textinho, um apêndice pra lá de ensaiado. Foi num desses que ele soltou “nosso site é .mus.br, não é ponto com, porquê com é comércio e o que a gente faz é música”. Aham. Meses atrás, a banda fez um show em João Pessoa cobrando 40 reais inteira e 20, estudante.

Felizmente não choveu, a Praça da Bandeira lotada. Lá no meio, eu, a pessoa mais por fora do planeta, sem saber cantarolar um verso, e em volta, a gurizada cantando as músicas do Teatro Mágico em uníssono, como que numa igreja. Cartazes, coraçãozinho pintado do rosto, e palminhas nas horas certas. No mais, nada lá muito arrebatador, ou vai ver eu que tô ficando velho. Umas melodias de Rock Nacional (Engenheiros?), somadas a uma tentativa de abordagem poética (coisa que o Cordel do Fogo Encantado já fazia), com umas temáticas coração bem Los Hermanos. E ainda tinha um violino fazendo umas intervenções e dois malabaristas pendurados num cordão. Tudo isso envolto numa aura de teatro e circo, que tornam o espetáculo ainda mais "cultural” (argh), terno e cândido. Pra mim, não passam de uns Emos que chegaram à universidade.

Pode não ter me convencido, mas tenho que admitir que são bastante competentes no que fazem. Comunicam bem o que querem, geram empatia. Afinal, não seria a toa que alguém sairia de casa com faixa na cabeça e com coraçõezinhos pintados nas bochechas.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Um comentário

Agora compreendo quando algumas pessoas simplesmente param de escrever. Não que tenham percebido que não sabem. Na maioria das vezes, os que tomam uma decisão dessas são exatamente aqueles que se dão bem com as palavras. O fato é que uma rotina corrida não abre tempo para a fruição de idéias. Foi assim que eu me dei conta de que literatura tem que ser um lance que tem que ser vivenciado. Não é pontual como fazer um artigo, ou uma crônica. Seja um romance, um conto, e principalmente poesia, a coisa tem que ficar reverberando na cabeça. Não basta ter uma idéia. Você tem que viver e sentir aquilo que você vai transformar em palavras. E depois tem que decupar cada frase em separado, para só depois encadeá-las e ver se o conjunto está bom. Comigo pelo menos funciona assim. Tinha que ficar atacando a idéia por diferentes lados, procurando um formato que fosse o mínimo criativo, mas que não ficasse "viajoso" ou obscuro demais. Enfim, algo que valesse a pena ser exposto. E como se não bastasse essa falta de tempo para "maturação" de idéias, ainda tem o senso crítico que vai se afunilando a cada dia.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

No século XIX

No século XIX, Baudelaire, após alguns goles de absinto, vociferava coisas desse tipo:

A partir desse momento, a sociedade imunda precipitou-se, como um único Narciso, para contemplar sua imagem trivial no metal. Uma loucura, um fanatismo extraordinário apoderou-se de todos esses novos adoradores do sol.

Ele falava da Fotografia. E isto porquê ele não conheceu os flogs, o Orkut, Photoshop, celular com câmera, etc, etc..

domingo, 30 de março de 2008

domingo, 23 de março de 2008

Eu prefiro música cabeça

É fato: como todas as formas de arte, a música, especificamente o Rock, deixou há muito de ser regido pelo senso de invenção. Digo e explico. O apocalipse começou em meados de 77 e levou o singelo nome de Punk Rock. Foi o retorno às velhas bases, a exaustão do estilo, não havia mais pra onde ir. Depois de alçarmos às estrelas e dimensões paralelas a bordo de sintetizadores progressivos, a grande tendência, o sinal dos tempos agora limitava-se à pura expressão das angústias juvenis, onde a raiva suplantava e saciava qualquer necessidade de técnica. Era o Punk.

Mas o Punk que nascera anárquico cometeu a ousadia de se estipular padrões. E como a anarquia lhe era intrínseca, esses padrões não custaram a ser quebrados. Logo, a atmosfera punk, encharcada de uma permissividade maior do que qualquer hippie jamais sonhou, começou a avançar sobre outros estilos, e outras épocas. E lá estavam o Clash e os Specials colocando os punks pra dançar reggae; os Stray Cats resgatando o espírito Rocakbilly; o The Jam se apoiando nos Mods dos anos 60, e por fim, a maior das piadas: o sintetizador, o pavoroso sintetizador dos Progressivos, também fora cooptado e assim deu frutos. Era a New Wave.

Aí veio o pós-punk, urgente como o punk inglês, e indiferente como o punk americano. Foi o fim da festa. Os dias de CBGB’s, Blondie e Ramones haviam passado. Foi o alvorecer dos Yuppies, de Reagan, da Guerra Fria e da Aids. Era uma época fria, de poucos sorrisos. Mesmo na pista de dança do New Order, o tom era melancólico, mas ainda inventivo. O próprio New Order se reinventara após deixar de ser o Joy Division. O rock inglês como todo um teve que se reinventar depois que a sanha festiva dos primeiros punks perdia o sentido. Na Inglaterra, os Smiths inventavam o que o REM e o Sonic Youth colocariam nome anos depois: o Rock Alternativo.

E foi assim que acabou um período de criação que começou quando Allein Ginsberg e Jack Kerouac saiam da literatura para abrir o portal onde o Rock se jogou para a nova era, nos anos 60. No início dos anos 90 a melodia havia acabado. O aparente desleixo do Velvet Underground com as peças assobiáveis fora levado ao pé da letra, e aquela década começava com batidas e coreografias hollywoodianas. O Rock de verdade, não as palhaçadas onde o Metal patinava, estava derrotado, morto. Daí não lhe restou fazer o caminho de volta, se não havia saída para frente, teria para trás. Enquanto na Inglaterra o pessoal unia o legado dançante dos anos 80 com sons da Era psicodélica, o Nirvana fazia um mix de Pixies e Sonic Youth que desbancava o Rei do Pop das paradas. Depois veio o Oasis com seu rock de macho temperado com açúcar sessentista, e por fim os Strokes deram o ponta-pé ao Revival 80 que só parece recrudescer.

Hoje praticamente não existem mais tendências originais, como foi a onda rave no fim dos anos 90. Quando muito existem bandas originais, que se arriscam sozinhas, e despontam para além do momento e para a história. Muitos medalhões cedem às modinhas, outros permanecem a parte em seus mundos, indiferentes aos rios de dinheiro que correm e que não são nada perenes. É o caso do Radiohead e do Portishead, que não por acaso tem “cabeça” em seus nomes, o que por si só já significa muita coisa.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Descarado


Antes, Janine só o conhecia de vista, vendo-o pela televisão, como quase todo mundo. Deputado não é do tipo de pessoa das mais acessíveis. No dia que ela o viu através do vidro do laboratório, entrando na loja para pegar umas fotos que mandara revelar, não conteve o sobressalto. Aquele rosto respeitável, de representante do povo, não condizia com o do libertino, cujas estripulias estavam bem registradas nas fotos que acabava de pegar. E naturalmente, a mulher que posava com ele entre lençóis ou dentro de banheiras não era a sua esposa oficial. Após pegar as fotos e pagá-las, ele deu uma olhadinha em volta, perscrutando rapidamente os olhos os funcionários por trás do balcão, como quem diz ninguém viu nada, ninguém sabe de nada.

Dali em diante virou hábito. O deputado passara a revelar os retratos dos adultérios sempre naquele laboratório. Pela TV, Janine via aquele homem dando entrevistas bem empostadas, e pouco depois estava lá ele, estampado de quatro e máscara num maço de novas fotos. Tamanho o costume, o deputado começou a criar intimidade com as atendentes da loja. A coisa atingiu tal ponto que o deputado chegou a convidar todos os funcionários da loja para o aniversário de um filho seu, em retribuição aos ótimos serviços prestados ao Estado.

Janine foi meio a contragosto. Só lá teve a certeza de que não deveria ter ido. Sentiu algo parecido com nojo quando reconheceu no salão muitas das que estiveram em fotos com o deputado, agora sentadas naquelas mesas distintas, com caras de princesinhas diante dos fotógrafos e cinegrafistas. Janine bocejava quando o deputado surgiu próximo a sua mesa, em meio a um alvoroço de flashes e holofotes, e cumprimentou cada uma de suas colegas. Ao lhe cumprimentar, deixou um papelzinho em sua mão.

Demorou, mas ele conseguira de novo. Depois da propaganda e do cortejo, foi exatamente como planejara. Alguma daquelas morderia a isca, e foi o que aconteceu. No sábado seguinte, Janine caía na cama daquele motel já bastante conhecido das fotos e, com o indicador adornado com um brilhante, fazia um sinal de negativo para o deputado. Só não revele lá, ok?, disse ela, sem saber que ele já tinha outro lugar em mente.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

O peso da dádiva


Ninguém conseguia mentir para ela. Nem em casa, nem no colégio, nas brincadeiras, nunca. Até aquela data, ela só ouvira verdades, algo bom se entre elas houvesse sequer uma palavra de carinho, ou de uma consideração maior. Pelo contrário. Ou era o silêncio - acompanhado por um olhar engasgado - ou era a verdade cristalina, fosse qual fosse, e até gostaria de algumas vezes ter ouvido uma mentira, dessas que enfeitam tudo, embora elas nunca viessem. Assim, preferia pensar que, apesar de não expressarem afeição por ela, pelo menos agiam com sinceridade. Mas um dia, alguém lhe disse algo que nunca mais voltaria a ouvir, algo tão sincero e verdadeiro quanto o que todos sempre lhe disseram, com a diferença de que era bem mais do que tudo que esperava ouvir. Foi um “eu te amo”, dito por uma prima de seu pai, Marcela, que havia ido passar uns tempos em sua casa.

Na hora ela não entendeu bem, só achou divertido. Ria das escapadelas, dos encontros às escondidas, dos beijos apressados, até que um dia compreendeu o caráter clandestino daquela relação, e chorou com o medo do futuro. Naquele mês, Marcela deixara de ser uma hóspede para ser a sua maior e grande razão de felicidade.

Na frente dos outros agiam como grandes amigas, dessas de andarem grudadas e dormirem juntas. Mesmo depois de tomadas por ânsias quase convulsas, as duas continuaram fazendo as mesmas coisas de antes, andando juntas, às vezes até de braço dado. Mas tanta naturalidade acabou culminando com o deslize fatal que pôs tudo a perder. Um dia, no meio da feira, as duas se beijaram, um beijo inocente, até meio trivial, quase um mero tocar de lábios, o que não lhes livrou do escândalo.

Na manhã seguinte, enquanto Marcela partia numa carroça para casa de um outro primo, ela se debatia de desespero nos braços do pai. Depois de alguns anos mortificada com a perda, ela sumiria para sempre daquela cidade, e para quase todo mundo ela tinha ido atrás do seu amor de devassidão. Na verdade, nunca se reencontraram. Ela tinha mesmo ido era viver exilada de todos, enclausurada numa vida de distância e silêncio. Só ouvir verdades era algo doloroso demais.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...