terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Apólice

Nem sei se devias saber
Que ando por aí dizendo
O teu nome, sem querer.

Até te chamo
Sem ter nem pra quê

E te vejo onde ninguém mais vê
E te espero sem ter combinado nada
E nas horas mais inapropriadas
Começo a rir, descontroladamente

Aparentemente, sem motivo
Ou pelo gosto de se sentir vivo
Coisa que eu tinha esquecido
Ou nem lembrava de ter sentido.

Tantas noites, desolado
Foi em vão, e eu sem saber
Que o que era meu estava guardado.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O crime


Maria Cristina já levava uma vida normal até o dia em que ficou diante do homem que lhe torturou e lhe estuprou, anos antes. Ela havia se mudado há pouco tempo para aquela rua, e Cecília foi uma das primeiras pessoas com quem conversou. Logo se deram bem, viraram amigas, e na primeira vez que Maria Cristina foi em sua casa, deu de cara com aquele senhor sonolento na poltrona. Era o Ex-tenente Trajano, pai de Cecília.

Em 1974, numa daquelas passeatas frustradas, o exército prendeu 15 estudantes e os conduziu ao batalhão. Lá, separaram os homens das mulheres e aí começou o inferno. Antes dos interrogatórios intermináveis e das sessões de tortura, algumas daquelas moças foram apresentadas à face mais cruel do então Tenente Trajano. Poderia passar mil anos, com todas as rugas que pudesse ter, e todos aqueles cabelos brancos, mas Maria Cristina o reconheceria de qualquer forma. Ainda mais com aquele sinal enorme embaixo do olho, ela não tinha dúvidas quanto a sua identidade.

Cecília explicou que seu pai não era mais o mesmo. Não falava mais e passava a maior parte do tempo sentado naquela poltrona. Um dia, Cristina foi na casa de Cecília lhe entregar umas revistas e encontrou a porta só encostada. Não havia ninguém em casa, a não ser o velho sorumbático na sala. Naquele momento, sentiu o peso daqueles dias. Não era fácil conviver e transitar próximo a pessoa que mais odiara na vida, a pessoa que quase lhe destruira por completo, que lhe impediu de ter filhos, de andar normalmente, sem contar as noites sem sossego e os incontáveis traumas que carregava até hoje. Ao ficar mais uma vez frente a frente com aquele homem, Cristina lembrou como é se sentir completamente suja por dentro e por fora, e quando viu, já tinha fechado todas as janelas e aberto uma das bocas do fogão.

A Polícia concluiu que alguém deve ter esquecido aquela boca aberta e deu o caso por encerrado. Mas foi no velório que Maria Cristina viu que o seu crime não foi perfeito, e quase caiu para trás quando o Ex-tenente Trajano chegou fardado para o último adeus ao seu irmão gêmeo.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Quatro andares


Pela segunda vez naquele dia, Angelita acordava após ver o mundo desvanecer-se debaixo dos pés. Voltava a si e via que não estava em casa, pelo jeito era um hospital ou um posto de saúde. Ao seu lado estava Abílio, porteiro do seu prédio e talvez o único homem que lhe amaria na vida. Mas ela jamais chegaria a saber disto, simplesmente porquê que não reparava mais em homem nenhum, e muito menos num tipo como Abílio. Angelita tinha desistido de procurar amores. Seus pretendentes sempre fugiam quando a viam cair se contorcendo, revirando os olhos, e colocando aquela baba pela boca. Naquele dia ela conferia a caixa de correio quando caiu tomada pelas descargas súbitas. Abílio, sem saber o que fazer, chamou a ambulância achando que aquilo fosse um enfarto. Quando chegaram ao posto de saúde, a médica lhe explicou tudo, e os dois voltaram a pé para o prédio, meia hora depois.

A cada quarteirão, Angelita tornava a agradecer com a voz trêmula, em parte pela raiva de si, em parte pelo temor de uma nova crise, pois ela só receberia o ordenado na semana seguinte, e até lá não teria como comprar os remédios pra cabeça. E Abílio ao seu lado só ouvia, confrangido, emocionado, era a primeira vez em três anos que ela lhe dirigia a palavra. Chegaram e, sem se despedirem, cada foi para o seu canto naquele prédio quase deserto. Angelita não sabia, mas era a única moradora do edifício, fora o próprio Abílio, que era só o porteiro, e se aprontava todas as manhãs para vê-la passar pelo saguão quando ia para o trabalho.

Mais tarde, Angelita em sua poltrona pensava mais uma vez se sua vida teria um sabor muito diferente se tivesse alguém para lhe ouvir, ou para rir com ela de algum filme do Jerry Lewis, ou para jogar pedras no laguinho da praça. Mas não, deixa pra lá, não estava mais em tempo para aquilo. Sua vida estava muito boa como estava, tinha sua casa, sua madrinha para visitar aos sábados, e as suas segundas-feiras para esperar. Temia mesmo qualquer coisa que pudesse afetar a organização de suas coisas e horários, isso poderia mudar seus hábitos, idéia intolerável, um horror. E ainda tinha a doença, que lhe fez entender que era uma pessoa defeituosa para a vida, livre da obrigação de ser feliz maritalmente. Enquanto isso, lá na portaria, Abílio via na televisãozinha preto e branco uma novela cheia de eu te amos, e pensava se algum dia, alguém, ou até mesmo Angelita, lhe diria um daqueles, mesmo de brincadeira, mesmo ligeiro, mesmo sem querer muito. Mas não lhe diriam, nunca, quem ele pensa que é para ser amado?, acorda, Abílio, amor é luxo, é coisa de gente que obtura dentes, que vai a rodízio de pizza, ao cinema, que só usa roupa passada e com cheiro de amaciante. Melhor ir colocar o relógio para despertar às quatro e meia pra poder se arrumar a tempo de ver Angelita passar.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A verdade

Era ginecologista. Até hoje, quase dez anos depois, não sabia como tinha se tornado o que era. Pouco antes de se ver com o diploma na mão, jamais sentiu que tinha vocação ou dom para cuidar de partes tão complexas e melindrosas do corpo feminino – e logo do feminino. O certo é que nunca teve nenhum tipo de atração especial ou curiosidade pelas áreas em questão. Gostava das mulheres, quase as venerava. Mas nada de virem de pernas abertas, com aquele desvão misterioso, sem fundo e sem começo, apontado em mira pronto para lhe engolir.

Vai ver foi por isso que deu certo. Antes de entrar na faculdade, a visão de um púbis desnudo lhe provocava tanta emoção quanto a de uma orelha ou um cotovelo, ou seja, nenhuma. Nem a visão, nem o cheiro, nem o gosto, nem o sexo, nada chegava a lhe empolgar. Era tudo sempre chato, cansativo e demorado. Sim, as moças eram diferentes, gordinhas, esguias, virgens, ruivas, peludas, rodadas, mas no fim dava sempre na mesma. Ouviu falar com excitação que o órgão das japonesas era na horizontal, o que infelizmente nunca pôde comprovar. Pelo menos todas as que chegou a ver na adolescência tinham feições que variavam pouco, mas era lógica de funcionamento, o metiér, idêntico e enfadonho, que mais lhe entediava nisso tudo. Era como um carro ou uma tevê, tanto faz a marca, liga do mesmo jeito.

Essa opinião não mudou muito depois dos dez anos de prática ginecológica. E a quantas já não teve acesso, dentro e fora do consultório, a trabalho ou por lazer? Não importa, achava sempre tedioso, era como um déjà vu que não acabava nunca. Por isso preferia conversar horas esquecidas com as mulheres. Sentia que ganhava mais assim, vendo elas falarem ao invés de gemerem. E conversava bastante, inclusive com as suas pacientes. Não tinha como elas se sentirem constrangidas diante de um homem que, enquanto lhes examinava, parecia estar aguando as plantas ou amarrando os sapatos. Na verdade, tudo isso nem era tão de se estranhar se comparado a sua tara mais recôndita, que tinha a ver com lenços, encharpes e pescoços de adolescentes.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

De como se faz um navio fantasma

No cais, não houve o festival de acenos avulsos, nem papel picado, nem lágrimas, nem banda tocando, nada. Apenas o vento batendo nas tábuas cheias de limo, um céu sem brilho nem cor, e um homem que via do píer o navio se afastar do continente. A despeito da chuva que já principiava, o homem permanecia estático, queria guardar a visão do navio partindo para sempre. O navio ia, mas ia numa vagareza que chegava a incomodar o homem, era uma expectativa ao contrário, o navio insistia em não sumir na paisagem, parecia que não saía do lugar, relutando contra pressão em suas velas. Mas para o alívio do homem, e depois de todos naquela cidade, o navio já estava um pouco menor, e começava a pegar as correntes robustas, tomando a sua rota de esquecimento. Ia sem mapas, bússolas ou cartas. Ia trôpego, vacilante, cortando ondas esquálidas, com os porões atulhados com todos os tuberculosos do país para uma viagem sem chegada, sem coordenada e sem destino. Através das vagas, a nau vagaria, e assim continuaria, após o último deles morrer.

sábado, 1 de setembro de 2007

Em Campina Grande

Em Campina Grande, o pessoal quer ver o Satanás e não quer ver um dos seus supostos adoradores, conhecidos por lá como "roqueiros".

Contrariando a todos os prognósticos, existe gente que curte Rock na cidade do Maior São João do Mundo. Se isso não significa lá muita coisa em lugares ditos desenvolvidos, como São Paulo e Belo Horizonte, que dirá num lugar que só possui três estações de rádio, sendo duas delas idênticas?

O Rock e seus cultuadores sempre tiveram uma vocação pra marginalidade, até encarnaram o espírito da contra-cultura numa certa época. Mas em Campina Grande, isso é elevado ao cubo. Tem algo de Ku Klux Clan, sociedade secreta, máfias, um tipo de "ocultismo". A gente sabe que isso de se colocar a parte também se deve eles, aos próprios "roqueiros", é a coisa do grupo, de se agregarem para se sentirem melhores que demais, etc, etc. Mas não é só isso.

A figura do "roqueiro" em Campina causa no cidadão médio uma mistura de medo e raiva. A simples presença de um deles, a mera visão, já gera um incomodo quase incontrolável. Uns sentem nojo, outros vontade de rir, escarnecem, como que de uma sub-raça acéfala, capaz apenas de bater cabeça e cantar coisas em línguas ininteligíveis. Mas pudera, a imagem cunhada (de novo, pelos próprios "roqueiros") é daquela figura toda de preto (a despeito do clima), cabelo grande (irresponsáveis?), e um ar meio arisco, meio abobalhado. Daí a lhes associarem a tudo o que não presta.

Não por acaso, o estilo mais popular entre o público roqueiro de Campina é o METAL, e os seus ouvintes fazem o possível para ter um visual em sintonia com este som. Pelo menos a maioria é assim, deixando por onde passa um rastro de narizes torcidos. Os caras do Kiss ou o Marylin Manson se comoveriam com forma como que a Atitude Rock'n' Roll é exercida em Campina. Lá tem que ter "colhões" pra botar a cara na rua, é um dos poucos lugares do mundo em que o conceito de true é entendido na prática. Em volta disso tudo, há uma sensação de um verdadeiro apartheid cultural, uma ditadura da monocultura. Mas deixa quieto. Se lá músicas com versos como "Vá pra porra/ Sua cachorra" ou "Vamos fazer bebê agora/ Quer beber?" são o parâmetro de gosto, então não é bom nem discutir...

domingo, 19 de agosto de 2007

A sorte de Mercedes


Depois de matar o marido por quem largara tudo, Mercedes teve a impressão de que o estampido ainda continuou ecoando, e ecoaria para sempre nas fendas daqueles maciços. Aquele eco ficaria impresso na paisagem, como lembrança de um ódio bem destilado, ou de uma vida mal resolvida, o que acabava dando no mesmo.

Corriam os anos da guerra. Numa cidade próxima ao foco da insurreição, o governo reunia suas tropas para o próximo e quem sabe último ataque. Os soldados não conheciam bem o lugar, mas se animavam com a possibilidade de virarem heróis. Todos menos o Cabo Epitácio, que agora estava mais preocupado com a menina que conhecera quando descarregava o armamento.

O ataque ocorreria em uma semana, mas antes disso Epitácio e a sua menina já tinham se entregado aos clamores do amor, decidiram fugir de tudo, do mundo se possível, para longe da guerra e para si mesmos. E assim Epitácio desertou sem uma explicação formal, sumiu dentro da noite baixa, levando apenas a sua menina pela mão. Ela também desertava. Havia sido plantada ali para se inteirar das estratégias do exército, a mando do próprio pai, um dos lideres do movimento, e agora, esquecida da missão, um homem decidia o seu destino pela segunda vez.

Naturalmente acabou não ajudando em nada. O exército do governo sufocara o movimento e a revolta acabou como o planejado. Anos depois eles souberam do fim da guerra. Para Mercedes, saber que o pai pôde ter sido fuzilado não foi nenhum consolo. Nada mais a consolaria de ter posto a própria vida nas mãos de outra pessoa, por duas vezes, e isso era de uma indignidade que lhe tirava o sono. Inquietava a idéia de ser frustrada com uma vida que ela não tinha escolhido. Acabou que numa dessas noites de vertigem, ela confundiu o marido com o pai e lhe meteu um tiro no rosto. No fim foi até bom. A nobreza e a doçura de Epitácio só aumentavam o seu asco por si mesma. Não suportava mais viver com tanto amor.

domingo, 29 de julho de 2007

A vida chega


Do alto da mesma escadaria, Dirceu se viu ínfimo diante do orgulho do homem lá embaixo. Ele não o conhecia, mas sabia que uma visita logo após o almoço não seria por um bom motivo. Ao seu lado, uma menina, esta sim, não lhe era estranha, mas estava estranha, esmorecida, mortificada. De fato, nos últimos dias ela veio tendo arrancado de si tudo que lhe fazia ser quem era. Primeiro foi o escárnio da cidade, depois o desprezo das amigas, a violência da mãe, e quando não restava muito além da própria presença, seu pai lhe tirou do convívio a troco do filho que Dirceu lhe colocara na barriga.

"Faça o que quiser com ela, mas comigo ela não volta", disse o pai dela já saindo de lado, indo rápido pela pequena alameda, lá para trás do esquecimento dos quatro grandes montes. Em tantos anos de querelas e rusgas com meio mundo, Dirceu estacou sem voz naquela encruzilhada. Nessas alturas, Jacinta, a sua esposa, que não tinha visto o início da conversa, já tinha entendido tudo quando viu a veia pulada na testa do marido, a menina cabisbaixa no patamar, e o senhor já indo longe, sem olhar para trás. Por fim, Dirceu só se aliviou quando mandou chamar um dos seus imediatos para que acomodasse a menina onde desse.

Ela que ia ficar por uns tempos foi ficando, ficando, e logo virou uma das criadas. O Imediato ficou encarregado de lhe guiar naqueles primeiros dias. Assim, isentando-a de contar-lhe o passado, o Imediato deixou de ser o seu protetor para ser o seu marido. Viveram um casamento casto, porém pacífico. Dirceu lhes deu um bônus para que arrumassem as coisas da casa, e com isso colocara uma pedra em cima da história. Já estava velho, sentindo os quebrantos dos últimos momentos, e só não era plenamente feliz porque sua esposa Jacinta não tinha lhe dado um filho. Mas pelo menos a certeza de que o Imediato seria um bom pai para aquele menino lhe servia de alento. Com a sua morte, Jacinta herdou sozinha todo o dinheiro, as sociedades, as terras e o segredo, que certamente lhe exigiria mais cuidado do que qualquer outra coisa. Ela só não sabia até quando suportaria isto.
.
.
.
::: veja a continuação nos dois posts abaixo. É grátis!

segunda-feira, 16 de julho de 2007

A vida parte


No dia que levaram seu filho, Lucinda teve certeza de que não viveria mais que uma semana, e exatamente sete dias depois, batendo cabeça nos afazeres, sem ter mais onde guardar tanto dilaceramento, o coração arrebentou-se no que ela, antes de morrer, julgou ser um soluço de pranto. Lucinda tinha se acostumado a ser uma coisa só com o filho, falando o que o outro já estava pensando, pensando o que o outro já ia sentindo. Na despedida calada e sem acenos, Lucinda ao entrever o seu destino compreendia o porquê daquele seqüestro.

No quarto da frente, Dona Jacinta dormia aliviada sem a presença do filho da empregada. Era algo que vinha lhe perturbando já havia algum tempo, e quando não pôde mais agüentar, lançou mão de um de seus amigos chegados para realizar a retirada. Eram muitos os que lhe deviam favores, afinal a família detinha grande influência no lugar, e além disso não havia nas redondezas viúva mais generosa de amores do que Dona Jacinta.

Dentre os tantos que provaram de suas benesses estavam vereadores, o delegado e o diretor do asilo dos leprosos, chefe dos que levaram o filho de Lucinda. E ela sabia que não adiantaria reclamar a ninguém, não havia ninguém naquela cidade que tomaria suas dores e iria contra as vontades de Dona Jacinta. "Todos comem na mesma cocheira", pensava tremendo de raiva. Daí continuou com o mesmo silêncio que lhe entalou enquanto via a ambulância partir vacilante na estrada de terra, como se não quisesse ir. E lá no alto da escadaria, Jacinta com seu séqüito de primos e agregados também assistia a partida em silêncio, queriam ver que tudo tinha dado certo. A maioria ali nem fez questão de saber para onde levavam o bastardo, o único que poderia abalar aquele império perdulário.

domingo, 24 de junho de 2007

Como uma vida muda

Por trás dos quatro grandes montes se ouviu o choro rouco e profundo do triste Bem-te-vi. A cidade, silente e confrangida, assistia ao espetáculo dantesco do homem levado à revelia por dois cavaleiros sem pressa nenhuma. Já se aproximavam dos limites da cidade, e aí era que o homem esperneava na poeira, soltando clamores que não retiniam nas faces estáticas que assistiam ao cortejo. Lá onde tudo começou, no miolo da cidade, na casinha amarela, ao lado da porta, estava a líder dos que nada faziam por aquele que ia arrastado, atado como um escravo quilombola levado de volta. Sem pensar, Soledade dera abrigo àquele homem que chegara ali em trapos, prostrado, e foi direto bater em sua porta. Vinha faminto, assustado, mas com a atenção de Soledade logo se erguera. Voltara a parecer um homem de fato, limpo, comendo na mesa, capaz de sorrir, e assobiar. Antes que voltasse a ter voz pra falar quem era, Soledade o batizou de Bem-te-vi. Os vizinhos se compadeceram, e de pronto simpatizaram com o rapaz simples e de fala pouca, com um olhar de quem não teve família, e com um assobio, firme e acertado, igualzinho ao de um bem-te-vi. Entretanto, temeram por Soledade, o marido estava viajando, se chegasse não entenderia a presença daquele homem em sua casa. Ela, com olhar baixo, lhes dizia que não se preocupassem, Firmino estava na capital, e só voltaria dali a dois meses depois de tratar dos seus negócios, e de visitar suas velhas conhecidas da noite no cais.

Passado um mês, parecia que Bem-te-vi tinha nascido e se criado ali. Virara um faz tudo na cidade, era herói dos meninos e candidato a pai postiço dos que não tinham um de verdade. Os mais velhos o viam como uma boa alma, e as mulheres, casadas e solteiras, desfraldavam suspiros sempre que o homem com jeito de diácono prosélito passava sem devolver os olhares. Só Soledade que não comungava desses pensamentos. Naquelas noites quietas, Bem-te-vi assobiava para ela canções que ninguém mais lembrava, e outras que ele inventava na hora, deixando a menina com um sorriso cheio de lágrimas nos olhos. Entre um silêncio e outro, Bem-te-vi, ainda com uma voz atravancada, chegou a lhe falar que vivera num inferno de solidão, e que por ele ficaria na cidade para sempre. Soledade, fascinada a ponto perder a fala, ia acreditando em tudo, sem perguntar nada ao homem trêmulo de gratidão.

Mas naquele dia, os dois cavaleiros sem rosto vieram e o apanharam. Soledade acudiu depressa e deu de cara na certeza que os dois traziam. Estavam há muito em busca daquele homem que fugira do asilo dos leprosos, que ficava no alto de um dos montes, e do qual só se via um pedaço da muralha cinzenta. Antes que terminasse de ouvi-los, Soledade lembrou do feito dos trapos que Bem-te-vi vestia quando chegou: parecia roupa de preso. Ligeira, a verdade foi correndo de boca a orelha e todos tinham os rostos retorcidos pela possibilidade da cidade ter sido apodrecida toda de uma vez. Quando os gritos de Bem-te-vi cessaram entre as árvores, todos entraram em sua casas aliviados com a partida do impuro. Menos Soledade, que ainda naquela tarde recebeu um beijo na testa do senhor seu marido, que voltara com as mesmas poucas palavras e a distância costumeira. Era a sua vida de volta, sem fôlego e sem vontades, a não ser por uma coisa: dali em diante, só dormiria bem se encontrasse no vento pedaços de assobio trazidos lá do asilo, para poder sonhar com aqueles dois meses em que foi verdadeiramente feliz.

sábado, 9 de junho de 2007

Quem sou eu

Talvez uma farsa incompleta
E convincente
Um intervalo, um desvio
Ou uma lacuna
Talvez um tratante
Um embuste
Um nó sem arremate
Um disparate, linha tênue
Corda bamba, lá em cima

- É bem mais do que parece
E bem menos do que se imagina.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Nota de desaparecimento


Eu queria dizer
Mas não consigo admitir
Que eu não existiria sem você.

Já imagino tudo
A mão conferindo o bolso de trás
A camisa amarrotada nas costas
A mala sendo arrastada
É você indo devagarinho, saindo
Sem olhar pra trás
Com medo de me ver desaparecer.

E antes que batesse a porta
Antes que eu olhasse em volta
Meu vestido escorreria pelo ar
E cairia, e depois os brincos
Sem entenderem o sumiço
Do corpo que lhes carregavam.
E os porta-retratos também cairiam
Sem terem mais as mãos que antes lhes
Amparavam.

Assim, volto a ser o silêncio dos livros guardados
E dos discos arranhados.
Estarei em baús que nunca se abrem.
Mas as lágrimas ainda ficariam um tempo no assoalho
Antes de secarem.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

O fantástico método Susy


Depois da desilusão, do desalento, e da vontade de morrer, Susy emergia reconfortada. Parecia alguém que dormia durante um filme e acordava de repente: "perdi alguma coisa?". Ia tomar café com a cara meio amassada, os olhos ainda inchados, rindo até da toalha da mesa e do formato dos pãezinhos. A família nem estranhava mais aqueles comportamentos. Afinal, ela acabava alcançar uma marca notável: era a décima desilusão amorosa em dez anos.

Suas amigas eram sempre relutantes, não abriam um milímetro do coração sem que hesitassem bastante, e isso quando abriam. Susy, não, se escancarava logo. Em poucas semanas já estava cheia dos eu te amos, escolhendo o nome dos filhos, pensando o feitio da casa, essas coisas. O problema era que, com mais uns meses, o namoro, por mais firme que estivesse, acabava subitamente. Parecia maldição, praga de viúva, karma ruim, vai saber. Sempre, lá pelos nove, dez meses, quando ela enfim atingia os píncaros da paixão desenfreada, aparecia algo que causava um abalo no namoro, e tudo desmoronava logo seguida. E o que vinha depois desses finais também tinha a duração conhecida, quase cronometrada. Os dois meses após o rompimento eram uma treva só: muito choro, caixas de lenço, dores de estômago, fraqueza, desânimo, mais choro, e vários outros efeitos colaterais de uma depressão repentina.

No mês seguinte, Susy limitava-se a juntar os caquinhos de si, tentando retomar a vida, tentando não ceder às lembranças das sensações e dos sonhos que pareciam tão eternos, e como é sempre doloroso ter isso tudo arrancado depressa. Daí, no quarto mês após o término do romance, Susy estava outra, estava nova, de volta à ativa, pronta para o ataque ou para ser atacada. Antes da metade deste mês, ela já iniciava conversas com um novo pretendente, e aí o ciclo recomeçava. Suas amigas a tinham como uma verdadeira louca, sem um pingo de amor-próprio, isto porquê ninguém sabia o que ia pela sua cabeça. Desde sempre tendo problemas com a balança, Susy descobriu na sua primeira desilusão que emagrecera mais naqueles meses de tristeza do que numa vida toda de dietas. É, o raciocínio era meio suicida, mas no fim valia a pena. Quando se curava totalmente, ela estava uns quilinhos mais magra, mais linda e mais gostosa, o que tornava os recomeços cada vez mais fáceis.

domingo, 6 de maio de 2007

No ato


E se há mais estrelas no chão que no céu?
E se meus olhos ardem amargos de fel?
E se todo caminho me conduz ao léu?
E se eu sou a noiva que chora sem véu?
E se pra minha fome não há leite nem mel?

Eu abro a carteira, procuro o retrato
E aquele sorriso me salva
No ato.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Ordinária


Na manhã, a primeira coisa que se ouve são os passos decididos de Martinha, escada acima. Vai com uma sede que só homem pode matar.

Ela bate, e Petrônio a manda entrar com a voz de sono. A primeira visão que ele tem ao acordar faria o cético mais encarniçado balançar nas suas bases. Era Martinha no lastro da porta, e seu corpo ficava ainda mais dourado na contra-luz das seis e meia. Isso sem falar da blusa amarrada com aquele nozinho infame, deixando transparente só o bastante para imaginação trabalhar; e o short, uma tira de pano que se muito tinha quatro dedos de crueldade. Pois era ela, com todo o seu poderio de carne e vontade, pra cair em cima de Petrônio assim que ele escovasse os dentes.

É sem tomar café mesmo - e tem café da manhã melhor? Com dois pulos ela está debaixo do lençol, pronta para ser torcida, virada e revirada, arrepiada até as sobrancelhas. Petrônio nunca resiste, apesar de andar meio enjoado. Ela também já está enjoada disso, e dele, mas àquela hora, e àquela gastura, vai com o que tem a mão, e que mão, e que boca, e que tudo. Petrônio se perguntava se uma pessoa de dezoito anos já teria vivido o suficiente para aprender tanta coisa. Quase milagres. Milagres de um amor barato, num hotel barato com o parceiro barato. Martinha achava isso melhor do que ficar até a hora do almoço ouvindo história de chifre na manicure.

Nove da manhã e Martinha sai do quarto de Petrônio com o cabelo molhado, cheirando a uma lavanda esquecida ali pelo hóspede anterior. Depois de transformar o colchão num charco de suor, de se lambuzar inteira de alegria e de se sujar até a alma, ela não poderia sair daquele jeito, mesmo contente. Voltava rápido para acalentar com todo amor do mundo o filho da patroa, que jurava que ela ainda não tinha dado o primeiro beijo. Martinha era assim, batia na mãe, tirava dinheiro do avô, e trepava com o meio-irmão sem perder um segundo para hesitar.

sábado, 7 de abril de 2007

A primeira noite de Ramiro


Tempos depois, quando se lembrasse do dia que Adelaide bateu na sua porta, Ramiro teria certeza de que aquele fora o momento mais difícil da sua vida. "O senhor pode me arranjar um copo d'água?", disse a moça com a firmeza de quem não tem tempo para parecer desamparada. De fato, ela não precisaria dizer nada para que se atestasse o seu real desamparo. Mas apesar do cabelo desgrenhado, do pó do rosto, e dos andrajos, não passaram dois segundos para Ramiro reconhece-la. Durante anos desejou aquele reencontro, mas depois de um tempo, passou a querer tudo no mundo, menos revê-la. Na época que ela bateu na sua porta, após os quinze anos de sumiço, Ramiro já sentia um avesso de saudade, era uma repulsa pelo passado como um desfigurado tem pelo espelho. Mas a questão era que Adelaide estava agora diante dele, e ele não sabia o que fazer.

Não só sede, ela também tinha muita fome, nem sabia há quantos dias não comia. E Ramiro lhe serviu prontamente, lhe atendeu em tudo, sem dizer uma palavra, sem fazer nenhuma menção ao passado, nem ao que viveram, nem ao que deixaram de viver. Junto àquele silêncio perturbado, Ramiro carregava um indisfarçável estupor, semelhante ao de quando a viu pela primeira vez. "O senhor mora sozinho?", perguntou ela, e Ramiro, sentado na sua frente, com os olhos vidrados, disse que sim com a cabeça, sem atinar para as mesuras sem propósito de alguém que lhe fora tão intimo. Depois da sua vergonha pública, Ramiro se mudara para uma propriedade fora dos limites da cidade, mais para se livrar do peso daqueles malditos olhos piedosos, e de toda a compaixão coletiva que a sua desgraça lograra. E Adelaide, mesmo exausta e faminta, ainda conseguia ter lucidez para estranhar a hospitalidade de um homem que vivia sozinho numa casa tão afastada. O jeito como ele lhe olhava foi só mais um dos sinais para que, enquanto se saciasse, ficasse alerta para qualquer coisa que pudesse acontecer.

Ramiro começou a ver algo diferente nos modos dela, parecia outra pessoa, se bem que poderia ser coisa da sua cabeça, nunca confiou muito nas próprias impressões, ainda mais com toda essa vertigem. Esteve calado desde que ela entrara na casa, e já era noite quando, livre de qualquer pretensão, conseguiu perguntar, no meio de um engasgo, para onde ela estava indo. Adelaide, assustadiça, fez um gesto vago, e Ramiro apontou a rede enrolada no canto da sala. Enquanto ela se ajeitava no leito e relutava em se entregar ao sono, Ramiro, no seu quarto, percebia no meio do seu aturdimento que depois dos quatro anos de um namoro exasperado, e dos quinze, exilado de si mesmo, ele finalmente passaria uma noite sob o mesmo teto que a sua amada Adelaide, e ainda que não dividissem a cama, aquela era uma noite mágica, uma noite muitíssimo esperada, adiada desde aquele sete de maio em que ele não viu a sua noiva entrar com o pai na igreja. E nem poderia, porquê no momento em que ele lá no altar vivia os primeiros minutos de uma via-crucis que já durava quinze anos, Adelaide, longe dali, partia sem saber para onde, no lombo de um cavalo, após ser tirada de dentro da própria casa por um homem, um desconhecido de quem só se livrou quando, quinze anos depois, conseguiu pular da carroceria de um caminhão que a levava para outro cativeiro. Foi assim que ela bateu a cabeça e, desmemoriada, vagou por vários dias até encontrar uma casa, a casa de Ramiro, para quem trouxe a doce lembrança de que um dia foi vivo.

quinta-feira, 15 de março de 2007

A terra de Vitorino

Na sala, Vitorino velava, sozinho, o corpo do filho. A guerra lenta e de poucos tiros já se arrastava havia vinte e sete anos, e pelo jeito, Paulo, menino nascido e criado no meio do conflito, não seria a última baixa. Ainda havia ele, Vitorino, e a cada filho seu que morria, a cada irmão que caía, a cada mulher atraiçoada, ele aferrava-se ainda mais ao juramento que já esquecera. Após anos e anos vendo a família sendo diminuída, Vitorino nem notava mais a própria dor, era como barulho de grilo ou de relógio à noite, com o tempo você se acostuma e dorme. Aos poucos ele se tornava um poço de ódio em que não havia mais espaço para pesares. E agora, sozinho na casa, Vitorino era finalmente um animal desvinculado de quase tudo que se possa chamar humano. Era um animal em prontidão, desapegado do que fora um dia, sem amores, lembranças ou aspirações. Antes de ser dominado pela sanha cega que lhe arrancou as memórias, Vitorino sonhou muito com a sua avó e com algo que ela costumava dizer: "Nessa vida ninguém tem nada, a gente só toma conta". Ainda bem que ela não viveu para ver que ele rejeitou o ensinamento a troco de um futuro tão incerto. Pois Vitorino fincou a família ali, disposto a não entregar os pontos jamais. Jurou defender dos invasores aqueles tantos hectares que estavam com eles desde antes da chegada dos holandeses, nem que isso significasse o extermínio de toda a linhagem.

À medida que a guerra recrudescia, a terra, defendida com tanto ardor, vinha sendo descuidada, posta a parte de seus afetos em favor do desejo de esmagar o outro lado, e agora, o que no princípio era um terreno dadivoso, se tornara uma propriedade inútil e estéril. Os animais tinham sumido, só as ervas daninhas se proliferavam, e Vitorino, lá dentro da casa, com o rifle na mão, esperava os rivais virem tomar posse, para que finalmente pudesse descarregar neles a sua última cartucheira, com todo o gozo de satisfação acumulado de uma descendência inteira impedida de nascer por causa do flagelo. Mas eles não vieram, e não vieram nunca. Só muitos anos depois, quando um povoado se formava do outro lado vale, colonos encontraram dentro de um casebre um esqueleto enroscado numa espingarda. "Vamos embora daqui, essa terra deve ser ruim demais", disse o mais velho.

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Mudanças


Quando se levantou, sentiu a dor do último vestígio de esperança sendo estrangulado. Não encontrava no olhar de Eunice um mínimo resquício, um rastro sequer, daquele brilho que o seu olhar sempre lhe brindava. "Isto é tudo?", ele perguntou, e ela se limitou a assentir, sem piscar, sem falar. Adalberto olhou para o peito dela e viu o volume dos curativos, e imaginou a cisão por baixo deles, e os pontos que guardaram dentro dela o abismo em que ele agora caía de cabeça para baixo. A mãe de Eunice lhe levou até a porta, desconsolada. "É a escolha dela, né?", disse ela, sôfrega, e a resposta dele foi apenas um sorriso apático. "Qualquer dia você aparece, aí conversam mais um pouquinho", ela completou mas ele não chegou a ouvir. Estava atordoado demais para perceber algo além da ilha de desalento que virara. Recusava-se a aceitar aquela situação, era uma idéia simplista demais, para não dizer prosaica, patética, ridícula. Um transplante de coração não é capaz de mudar os sentimentos de ninguém, os sentimentos estão na cabeça, porra! Mas de qualquer forma tudo isso era muito intrigante. Menos para o próprio Adalberto, que agora andava sem chão e dormia o sono intranqüilo dos contrariados no amor.

domingo, 21 de janeiro de 2007

O causo de João Silvino

Foi no meio do lusco-fusco, que ficou só lusco, quando apareceu. Veio de dentro da luz, e era também de luz. Tocou-lhe o rosto, dizendo com uma voz que ele ouviu dentro da cabeça: "ninguém será maior que tu, enquanto tu mereceres". Daí no outro momento, tudo já tinha se apagado, e ele estava sozinho outra vez. Na manhã seguinte, não disse nada aos companheiros, nem disse nunca, os outros passaram a dizer "o que esse homem tem?", "por que ele não morre nunca?", e não morria mesmo. Companheiros caiam, chefes morriam, de bala ou de doença, e ele permanecia, intocado, sem marcas sequer. Os anos passavam, menos ele, que se tornara o mais temido, o mais respeitado, o mais idolatrado, ninguém cruzava o caminho do homem que ninguém pegava. Perseguiam-no mais por dever de oficio do que por vontade de captura-lo. Transmutado num toco fumegante, ficava quieto, no meio das caatingas, enquanto os soldados batiam cabeça a sua volta, "cadê o homem, cadê o homem?".

Tinha guarida onde e quando quisesse, chegava com a roupa do corpo e saia de barriga cheia. Numa daquelas estadias, enfastiado pela majestade que angariara, bateu sem propósito numa menina que lhe respondeu mal e sem saber acabava de sepultar o seu dom. No outro mês, durante uma fuga, aproveitou a boa dianteira que tomara da Volante, e sem ainda saber como fazia aquilo, verteu-se numa estaca em brasa, no meio dos chique-chiques. Esperou e a tropa surgiu, passando rápida por ele. Mas antes que se distanciassem por completo, um dos soldados veio devagar, aproximou-se do toco, deu-lhe umas batidinhas em cima e lhe disse para ficar tranqüilo que ele não o denunciaria. Depois, seguiu em frente como se não tivesse acontecido nada e juntou-se ao destacamento. Quando os soldados haviam sumido no horizonte, ele decidiu que deixaria aquela vida sem endereço e nunca mais voltaria a fazer o truque. Não valia a pena passar por um medo daquele outras vezes.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...