quinta-feira, 25 de julho de 2019

É a vida


Um dia ela não veio. Aquela senhora, que todos os dias vinha àquela praça, que todos os dias sentava naquele banco, que todos os dias passava uma hora ali sozinha, calada, parada, um dia ela não apareceu. Da janela do meu quarto eu a observei repetindo aquele ritual inócuo por quase cinco anos. No começo, ela parecia esperar alguém, depois julguei que estivesse vigiando alguma coisa, e então achei que ela estivesse me espiando, pois o banco em que ela sentava fica exatamente de frente à minha casa. Protegido pela cortina, eu a via sem que ela me visse, mas pela sua expressão plácida, pelo seu ar sereno e contemplativo, ela parecia querer dizer que sabia que eu estava ali, observando-a. Foi daí que passei a mudar meus hábitos por causa dela. Comecei a sair mais cedo do trabalho, fazia compras apenas à noite, não fazia nada entre as 4 e as 5, tudo para não perder o instante exato em que a senhorinha chegava e a hora em que saía, era meu compromisso diário. Eu tinha que estar em casa antes que ela chegasse na praça, sempre precisamente às 16 horas, e se eu precisasse sair, só sairia após as cinco, quando ela se levantava, e ia embora com seu passinho miúdo, pelo caminho que tinha vindo. Enquanto isso, eu cá atrás da cortina, com minha xícara de café, mordiscava uns biscoitinhos, mal piscava, à espreita de alguma atitude diferente naquela senhora que eu nunca soube quem era.

Quanto mais passava o tempo e nada diferente acontecia, fui pensando cada vez menos nos intuitos obscuros que ela pudesse ter, ao mesmo tempo em que fui sendo tomado por uma curiosidade absurda sobre sua pessoa, até que essa curiosidade foi se transformando em compaixão, e por fim eu estava totalmente afeiçoado aquela senhorinha que parecia tão solitária, tão frágil, relegada àquela sua rotina. Mas aí teve o dia que ela não veio. Eu estava à postos, eram 16 horas em ponto, mas o banco estava vazio. Pânico. Deu cinco horas e ela não apareceu. Saí para a rua. Seis horas, anoiteceu, e nada dela. Mal dormi nessa noite. O que teria havido? Será que ela tinha morrido? Sofrido um acidente doméstico? Escorregou no banheiro? Vi o dia clarear enquanto remoía essas dúvidas no travesseiro em busca de alguma razão possível para o sumiço daquela senhora. No dia seguinte, fui todo ansioso para a janela, na hora precisa, e nada. Nem sinal. E foi assim, dia após dia, depois outro, e outro, ela não voltou mais e não voltaria nunca mais. Está difícil, mas é a vida. Eu já tinha esquecido como era esse negócio de solidão.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Todo dia é isso


Foi assim: Neguinho chegou na casa de Deivison era umas quatro e meia, por aí. Dona Socorro não viu quando ele saiu, mas Dayane ouviu a porta batendo. Coisa estranha. Ir na casa dos outros uma hora dessas, de madrugada, tudo escuro ainda. No outro dia, Dona Socorro foi perguntar se Dayane sabia de Deivison, sabia nada, Dayane não sabia de nada, não sabia nem dela mesma, só via Deivison todo estranho, calado, andando pra cima e pra baixo com Neguinho, falando que iam fazer uma parada, parada isso, parada aquilo, capaz de terem ido fazer essa tal parada hoje, Dayane dizia. Olhe, só Jesus, viu, Dona Socorro ficava irada, não gostava de Deivison de amizade com Neguinho, sabia que Neguinho era errado, já pintou mizera nesse bairro, foi preso quando era de menor, agora qualquer coisinha era presídio, sem boquinha. Mas Neguinho queria um parceiro, e colocou Deivison na fita, ia dar certinho. Deivison era desenrolado, botou o ferro na cintura e meteram o pé na moto. Seis e meia, pessoal no ponto de ônibus, Neguinho passou devagar e Deivison falou “bora, bora”. Lá na frente fez a volta e voltou ligeiro. Deu nem tempo parar e fazer a limpa, dois balaços e os dois no chão, cabou-se, papai. Tinha um p2 armado no ponto de ônibus, aí já era. Dona Socorro chegou chorando, Dayane também. Aí veio a viatura, o Samu, o rabecão, a TV, veio o povo olhar, o repórter fala com uma moça, aqui todo dia é isso. Todo dia.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...