terça-feira, 27 de abril de 2004

Inferno


Eis que tornou-se ínfimo. Inferior àquele infortúnio que lhe abatera. Infiel era o seu organismo infame que se manifestava com ares de infanticida, tomado por uma ira infesta e com disposição infensa. Aquilo não era uma infecção, nem tampouco uma infestação, embora uma grande inflamação se manifestasse em seu íntimo. Parecia infindo tal drama que o fazia se sentir infausto como nunca, e de modo infrutífero, permitiu-se ainda uma última inferência: sofria um infarto.


terça-feira, 20 de abril de 2004

Pequenas coisas que me enlouquecem


"A união da manada obriga o leão a deitar-se com fome"

- Ai, caceta!

Num dia só lhe picaram os pés, atacaram um pacote de biscoito mal fechado na dispensa e foram apontadas como prováveis causadoras do defeito em seu computador. Eram as formiguinhas pretas - sempre elas - que lhe causavam constantes acessos de loucura, seja pela dor ou pelo prejuízo.

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segunda-feira, 12 de abril de 2004

Fale agora ou cale-se para sempre


Tacitamente

- ...Fale agora ou cale-se para sempre!

Fechou os olhos e ficou esperando, trêmulo. Sabia que havia alguém ali no meio da assembléia que poderia se levantar e colocar todo o casório a perder. Estava incomodado com aquela presença, com aquela pessoa que estava assistindo o seu casamento e que ele vira desde que chegara ao altar. Após aquelas palavras, fez-se um silêncio previsível na Igreja e o padre deu prosseguimento - para o seu alívio. Benção final, beijo e chuva de arroz. Pronto, finalmente estava acabado, e ele nunca esteve tão tranqüilo.

Depois riu sozinho da própria bobeira. É claro que interrupções de casamentos só acontecem nas novelas, quando alguém se ergue de forma heróica e expõe algum podre de um dos noivos. Mas não demorou muito para que ele desejasse que isso tivesse acontecido, e fosse delatado na frente de todos. Viver sabendo que alguém o espiava de longe, ciente do seu segredo, começou a virar um troço bem angustiante pra ele. O outro do jeito que estava, calado ficou, e talvez nem cogitasse jamais dar com língua nos dentes. "Fale agora ou cale-se para sempre", a frase ecoava insistente nos ouvidos do noivo, que não agüentou e teve que escolher a primeira opção. Preferiu isso a chance de poder ser surpreendido a qualquer instante. Falou do amante, e naquela mesma noite foi pra casa dele ter o sono mais confortável dos últimos onze meses.

- Pronto, conseguiu: voltei pra tu. Nem precisa mais contar tudo a ela... - Disse enquanto tomavam café na manhã seguinte.


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sábado, 10 de abril de 2004

Prestação de Contas


Escuta aqui: não te culpo
Por não termos dado certo.
Por não teres tido pulso
Para me manter por perto.

Com pesar, não sou mais sua.
Por que eu já criei asas,
E fui procurar na rua
O que não achei em casa.

Pois nem todo mundo é "forte",
E logo eu, não tive sorte
De você me segurar.

No nosso enlace, cuja morte
Serpenteou e deu-lhe um bote
Fenecendo o nosso lar...


terça-feira, 6 de abril de 2004

Porres memoráveis


A lembrança de um porre

Zonzo era pouco. Mal conseguia firmar a cabeça parada. No momento, preocupava-se apenas com a pane que seus sentidos atravessavam. Sentia na língua um gosto semelhante ao do dia em que uma caneta estourou na sua boca na escola. O nariz com as mucosas ressecadas doía a cada inspiração (talvez tenha sido essa dor que o acordara há instantes atrás). Nos ouvidos havia o som do pulsar das veias nas frontes e no cérebro, comprimindo-se contra as meninges. O que funcionava melhor era a visão, salvo pela moldura turva com a qual as imagens lhe chegavam.

Pôde olhar em volta e percebeu que estava nu e numa banheira. E daí? Na sua busca alucinada por certezas, as únicas que conseguia enumerar eram: 1) não estava em casa (lembrava que na sua não havia banheira) e 2) estava de dia (de acordo com luz do sol que entrava pelas frestas daquilo que parecia ser um banheiro). Não tinha a mínima idéia de que lugar era aquele, nem de como havia parado ali nem de onde estariam suas roupas, carteira, relógio... Também não sabia há quanto tempo estava fora de casa - uma noite? Dias?

Respirou fundo e ficou tentando recriar sua trajetória de casa até ali, tendo como o marco zero o momento em que decidiu sair. Pelo o que deu pra lembrar, logo depois disso houve o encontro com os amigos e com mais alguns que ele não conhecia. Depois entraram na boate, procuram uma mesa e começaram a beber. Ainda lá, aquela noite lhe parecia um pouco singular por estarem mais bebendo que conversando. Daí em diante, o que era um fio contínuo de memória tornara-se um tracejado de flashes cada vez mais espaçados. Havia um flash em que ele contava as garrafas, outro em que ele estava vomitando e um último mais curto em que ele estava de bruços num carpete, ouvindo várias vozes desconhecidas.

Fez menção de se levantar dali e sentiu uma dor horrível nas costas, pouco a baixo da última costela direita, o que o fez largar o seu corpo dormente na banheira e desistir do seu intento. Instintivamente, levou a mão ao epicentro da dor e sentiu na ponta dos dedos algo como uma cicatriz, com pontos recentes feitos à linha.

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quinta-feira, 1 de abril de 2004

Bendita perturbação


  • Três pessoas no mundo morreram vendo "A paixão de Cristo" (uma delas na Paraíba).

    Independente da sua qualidade, o que Mel Gibson quis com esse filme não foi mais do que o que Van Gogh pretendeu ao retratar-se com ataduras onde estava a sua orelha, ou o que Dostoiévski quis com seus livros. Foi exatamente o que Glauber Rocha buscou com seus filmes, o que Shiko quer com seus desenhos e o que os Beatles quiseram aprontar quando lançaram o seu Sgt. Peppers. Todos só querem incomodar.

    A arte tem que se propor a isto. Se for previsível, não é arte, é "massagem", descanso, publicidade. Arte tem que trazer o novo do velho, desvelar o que se teima encobrir, apontar rumos, ampliar visões. Tem mesmo é que questionar valores e sentimentos, deixar em suspenso o que estava decantado, estabelecer novas linguagens, mostrar novas formas de pensar sobre o que está sendo dito ou sobre o que já se disse. Quem é artista de verdade quer sempre impressionar, abalar, seja pela dor ou pelo gozo. "Você jamais será o mesmo depois de ver isto!", "Quero que vá pra casa pensando!" - esses que são os seus lemas.

    Mas não basta apenas lançar mão de estímulos imagéticos e causar impacto na emotividade, o que é uma coisa facílima quando se trabalha com seres humanos. Forma em detrimento do conteúdo funciona, mas não coloca ninguém na história. Catarse tem que ser permanente, superar a temporalidade. Um conceito definido aliado a um manejo apurado da técnica acaba gerando sem maiores esforços uma obra bem resolvida, o que nos leva, inevitavelmente, à estupefação diante de um significado apreendido e apresentado com primor. Inerente a sua concepção, já estarão ali impressões da época e anseios, que acabam sendo universais.

    No fim, tudo é permitido, desde que não se apele.


  • Morada

    Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...