Falar que o aparato tecnológico desenvolvido nos últimos cinqüenta anos tem alterado completamente as formas do homem encarar o mundo e a história já é um clichê. A exagerada capacidade de captação e reprodução de momentos tem tirado da história a sua possibilidade especulativa que a permeou pela maior parte dos séculos de racionalidade. Não precisa nem ser uma ocasião ou um lugar "importante" para estar submetido a algum artifício de fixação de imagem e/ou som. A tecnologia despreza a imprevisibilidade, desdenha arrogante do nosso espanto ante o inesperado. Dêem boas vindas ao Big Brother.
Foi preciso uma grande sensibilidade e um impulso bastante visionário para George Orwell lançar a noção do "Big Brother" em 1984 (lançado em 1948). Na época, pouca gente entendeu que o tal "Olho que tudo vê" não era uma pessoa, nem tinha por trás de sua intricada rede uma mente vil que responderia por sua impertinência. Com o olhar de anarquista e ex-soldado, Orwell mirou certo na tecnologia e previu o status "divino" (a onipresença) que ela viria ganhar, numa época que ele considerou ser o "futuro".
11 de março na Espanha. Explosões em trens deixam mortos e feridos. Comoção internacional, discursos inflamados, implicações políticas. Dentro de sua limitação temporal, a mídia utiliza-se do momento posterior ao fato para nos reportar ao momento da tragédia. É com isso que estamos acostumados, tem sido assim desde sempre, desde antes de haver a própria mídia. O que diferencia este fato dos demais ocorridos ao longo da história é a presença de uma moça dentro de um dos trens, que no exato momento das explosões tinha sua ligação de celular gravada numa secretária eletrônica, há quilômetros dali.
É isso que a tecnologia faz: ela não nos dá margem à especulações. Não temos mais o luxo de imaginar, em pensar como terá sido aquele acontecimento, aquela tragédia. Sempre vai ter alguém ou algo gravando; haverá uma foto de um turista que aparece uma semana depois ou como nesse caso, um telefonema. Já estará ali diante de nós uma face nem que seja mínima do momento flagrado, da qual toda nossa capacidade de abstração será subordinada. Seremos apenas espectadores, levados a negligenciar o "impulso imaginativo" - receberemos imagens, não mais as criaremos.
Nas últimas décadas enfileiram-se "flagrantes": a morte de Kennedy (e a morte de Lee Oswald, seu assassino), a explosão da Challenger, atentados a figuras influentes, o 11 de Setembro. Um verdadeiro circo de horrores promovido pela presença das câmeras ligadas "na hora certa e no lugar certo".
Podemos imaginar como deve ter sido a ocasião em que o Arquiduque Francisco Ferdinando fora alvejado por um estudante na Sérvia, detonando a Primeira Grande Guerra. Podemos imaginar também como foi a sangrenta deposição da família real russa, ou ainda, a ocasião da morte de Julio César, esfaqueado por todo o Senado romano. Mas, no tocante à contemporaneidade, o exercício especulativo tem sido e será posto de lado em favor da simples recepção de sons e imagens gravadas. Este será o fim da mitificação, das distorções, da inexatidão, da abstração, enfim, do homem como o conhecíamos.