sexta-feira, 2 de setembro de 2005
Constatações
É tão bonito o sentimento
Que nem de longe esse palavreado
Disforme
É capaz de lembrar o que se tem aí
Dentro
E a vontade de abraçar apertado
É tão grande dentro deste mesmo
Corpo
Que pesa a ponto de deixá-lo lá
Fincado
Também poderia ser mais ameno
Mas sempre na hora se descarrila
Tudo
E o melhor afago sai com jeito de
Aceno
Já em casa, uma certeza acalenta:
Que é possível, sim, uma presença
discreta
Dizer bem mais que uma passagem
Barulhenta.
terça-feira, 16 de agosto de 2005
Agripino grande herói
Atendendo a uma convocação extraordinária, feita em parte de boca em boca, em parte pela difusora da cidade, a população se reuniu na praça naquela manhã para aplaudir o Agripino pelo seu ato heróico. A abertura das homenagens ficou por conta da banda da guarda municipal, que tocou até lá pelas nove quando o sol começou a esquentar. Depois se seguiram os pronunciamentos idênticos dos 22 ou 23 vereadores, que lembraram o feito do destemido Agripino, homem de fibra, exemplo de coragem, que na manhã anterior havia salvo das águas gulosas do açude a filha do seu patrão e prefeito, o Sr. Fontes. Ao término dos discursos, o presidente da Câmara subiu no palanque e deu ao Agripino uma medalha de bravura, alçando-o da categoria de simples tratador de cavalos à herói municipal.
Na qualidade de líder máximo da cidade e pai da menina salva, cabia ao Sr. Fontes encerrar as homenagens. Os assessores trataram de apressá-lo para que terminasse logo com aquilo, pois o povo, e eles também, já estavam querendo ir almoçar. Com lágrimas nos olhos e abraçando Agripino de lado, Sr. Fontes percebeu que a platéia não estava ligando muito para as suas mostras de gratidão, e meio que confundido pelo comício fora de época, achou de criar um efeito retórico inesperado: de chofre, propôs ao Agripino que lhe pedisse o que quisesse, fosse o que fosse, que não se acanhasse. Poderia pedir a recompensa que achasse que merecia, e que não se importasse com o preço. Aí a multidão se calou. Um silêncio de doer nos ouvidos se esparramou sobre a praça, sobre a cidade inteira, sobre a região. O vento cessou e houve quem jurasse que os pássaros haviam parado no ar. Estavam todos atônitos, lívidos com a possibilidade surreal de alguém enricar de repente, diante dos olhos. Pela gravidade dos rostos, parecia que estavam presenciando um milagre ou uma aparição sobrenatural. E Agripino, com um sorriso que não dava para saber se era de malícia ou de ignorância, tomou o microfone após alguns instantes de reflexão e falou decidido:
- Eu quero uma máquina de cortar cabelo!
domingo, 7 de agosto de 2005
Quem é
Quem é que chega
Derrubando muros,
Desdobrando esquinas,
Desatando os laços das
Tranças das meninas?
Quem é que chega
Começando a festa,
Bagunçando a praça,
Perturbando a ordem
E depois disfarça?
Quem é que deixa
Tudo às avessas
E encurta as horas
E defaz promessas
E encerra outonos
E desliga estrelas
E balança o mundo
E me dá tonteiras
E num só segundo
Já revolve tudo
E me deixa mudo
Quando diz "adeus"?
quinta-feira, 28 de julho de 2005
Graças ao acidente
O barulho de gente correndo por entre um matagal é inconfundível. Sons abruptos, impacientes, aparvalhados.
O afinco deles se via nas camisas empapadas de suor, mas ainda assim haviam perdido a moça de vista. Abriam picadas, viravam esquinas, estacavam, praguejavam. Ela passara como um raio, descalça, deixando as lágrimas pro vento e o cheiro do cabelo no ar. Ainda lhes ouvia, era como se estivessem bem no seu pescoço, arfando, salivando, irracionais. Não carregava nada além do pudor e do vestido sem nada por baixo. Suas pernas formigavam quando se meteu debaixo de uns arbustos ignorando os espinhos e os insetos. Tremendo de pavor, agarrou as pernas contra o peito certa de que se fosse pega não seria poupada. Sem querer ceder aos quebrantos da consternação, sua língua se repuxava pra garganta sempre que a mera possibilidade da violação passava pela sua mente como uma brisa desconcertante.
Os mosquitos já vinham trazendo a noite quando viram um pé delicado pra fora de um monte de mato. Mal desabotoaram as calças tiveram que desistir. Alguns ainda comemoravam quando um deles notou dois furinhos naquele calcanhar pálido.
quarta-feira, 20 de julho de 2005
Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Destempero
Outra vez você armou escarcéu
E escancarou aos quatro ventos
O que não fizemos a quatro mãos
E os sentimentos
Nos levaram ao estardalhaço:
Pegamos o estandarte,
Nos demos o braço
E fomos com o bloco, a banda
E o palhaço
Lavamos a roupa suja
E os retalhos das nossas colchas, das fantasias
Que não realizamos
Atiramos pratos e jarros ao invés dos confetes
Que sequer jogamos
E gritamos de ódio porque de prazer
Nunca gritamos
Não precisamos pintar os rostos porque de hematomas
Já nos pintamos
Nossos narizes vermelhos como os dos palhaços
É porque só choramos
E o espetáculo espatifado chega ao fim
Quando a fanfarra encerra a melodia
Com povo dolorido cantando alegre o nosso samba,
Que é deles também,
Já sob o sol do outro dia:
"Eu sei que você não tem medo de ir além,
Eu sei que você faz isso pelo nosso bem..."
quinta-feira, 14 de julho de 2005
Prazeres e prazeres
- Eu acho que eu não sou normal, não...
- Por que diz isso?
- É que tem uma coisa... Tem uma coisa que me dá um prazer maravilhoso, mas eu sei que é muito bizarro...
- O que é? Pode dizer... Você pode confiar em mim. - Sorriu.
- Não sei... Acho que você vai me achar um louco...
- Diz.
- Hum... É... Eu adoro ouvir o barulho da ratoeira.
- Como é?
- O barulho, aquele estalo que dá quando ela pega o rato, aquele "clac!"... É quase... É quase... Orgasmático! É sublime!
- Que coisa...
- Eu adoro... No meio da noite, aquele silêncio todo e de repente... "Clac!". Fico doidinho. Isso me remexe por dentro... É sério...
- Nossa! - E soltou uma gargalhada.
- É, mas não é pra espalhar, não... Já basta você sabendo das minhas taras...
- Não se preocupe, querido. Seu segredo vai ficar guardadinho comigo.
Passaram ainda algum tempo juntos e se despediram. Ele foi para casa dormir. Ela também, mas só conseguiria se antes acariciasse as urtigas que criava num vaso, enquanto olhava a foto de um ex-namorado.
quarta-feira, 6 de julho de 2005
Salvação
A notícia da guerra chegou com uma lufada de tristeza à cidade. Carretas chegavam vazias e voltavam para a capital com dezenas de recrutas para lutar sabe Deus onde. Soldados ainda sem barba na cara partiam, enquanto o contingente de mães desoladas crescia no lugar. O barulho dos aviões passando baixo e as senhoras de luto antecipado transformavam a melancolia numa peste contagiosa.
Naquela tarde Raimundo fora com os amigos se alistar na representação local do exército. Quando voltou, já de noite, entrou à surdina: não queria dar de cara com a tristeza da mãe. Jantou no escuro. Quando passou pro banheiro, viu no quintal a brasa do cigarro da mãe entre as ramagens do pé de caju. Foi dormir.
No meio da madrugada a cidade foi surpreendida por um crepitar impetuoso. Era um incêndio exatamente no pequeno quartel da guarnição, onde estavam todos os registros dos soldados que seriam apanhados nos dias seguintes.
Três da tarde. A pavorosa carreta estava estacionada na praça a espera dos recrutas. Em volta dos oficiais estava todo o lugarejo, liderado justamente pelo representante das forças armadas na cidade:
- É melhor os senhores irem embora e não voltarem mais. Vocês já trouxeram tristeza demais pra essa gente.
A carreta verde partiu e nunca mais foi vista por aqueles lados. A multidão exalou um cheiro doce de gratidão que amenizou um pouco o mormaço.
Assinar:
Postagens (Atom)
Morada
Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...

-
Somente em determinadas condições é que se pode perceber certas coisas, nem sempre construtivas. Por exemplo, como as novelas da TV Record s...
-
Doze dias depois do desatino Denise desistia de dormir Dormitava Daí despertava Desesperada Desistia. Debulhava-se, desfazia-se Doía-lhe dem...