quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Raul Seixas: um arquiteto de hits

Nesses 23 anos da morte de Raul Seixas, eu lembro que meses atrás, depois de ver aquele que talvez seja o documentário definitivo sobre o cara, finalmente pude confirmar uma antiga constatação: ele era um compositor. Parece óbvio, em se tratando de alguém que vivia da música e ficou reconhecido por isso. Mas ao mesmo tempo, a impressão que dá é que para o grande público Raul ficou como sendo um produto da resultante de um monte de rótulos que lhe foram imputados. Foi tão grande a carga e a dimensão que tomaram, que até o próprio achava difícil se libertar deles. Aí que entra aquele papo de “maluco beleza”, de “sociedade alternativa”, ocultismo, “profeta”, que, vá lá que tivessem algum fundamento no real, no fim eram apenas traços que não respondiam pelo todo - ele era e tinha muito mais a ser mostrado. Simplesmente, o foco que deveria estar na música era jogado no discurso e nas suas excentricidades. No mais, como ficou bem claro no filme, quem lhe impulsionava mesmo, a sua grande preocupação desde o início não era a exposição, nem a celebridade, muito menos o messianismo: Raul era um cara que vivia voltado para composição, a criação musical. Não por acaso, seu talento raro logo seria percebido por outros músicos e empresários do ramo assim que ele pôs os pés no Sul.

Foi lá que por um tempo ele trabalhou sob a alcunha de Raulzito, produzindo discos e compondo músicas que ajudaram a promover a carreira de muita gente. Nelas fica nítido o seu esmero e a sua capacidade enquanto verdadeiro artífice de canções, ora românticas, ora roqueiras, ora os dois juntos, mas sempre com comunicação direta com o popular e sem ser banal. Abaixo, canções que são de Raul e que pouca gente sabe:

"Doce doce amor"


"Playboy"


"Foi você"


"Objeto voador"


"Se ainda existe amor"


sábado, 4 de agosto de 2012

A praça de todos nós


Odair José
Praça Tiradentes
2012

Odair José está vivo. Odair José não amansou. Chamado de “Bob Dylan da Central do Brasil” nos anos 70, hoje Odair em cima do palco está mais para um Neil Young. Como Neil, o show é alto, a bola fica lá em cima a toda hora, o som não tem nada de “domesticado”. Muito bom ver que Odair não caiu na tendência geral que é, a partir de uma certa idade, assumir uma sonoridade mais “adulta”, tendendo ao easy-listening bossa-nova, focada nas mamães e nas avós da platéia. Sua matriz é a mesma – algo entre o country-rock e o pop sessentista – e seu discurso também não mudou. Não que ele tenha parado no tempo. É que ele sempre foi atemporal.

Também não é revivalista, não virou um cover de si mesmo, como Roger Waters. Nesse quesito Odair agora parece mais com Paul McCartney. Ao invés de apenas relembrar com nostalgia “antigos sucessos de um tempo que não volta mais”, de quando “estava em forma”, Odair José toca músicas que nunca morreram. E essas mesmas músicas, partes permanentes do inconsciente coletivo, servem de parâmetro não no nível da comparação negativa (“ele nunca mais vai fazer algo assim”), mas sim mostrando que as coisas atuais são tão fortes e pungentes quanto as anteriores. Pela forma como tudo se sintoniza, não dá pra saber se ele era maduro antes ou se é jovial hoje. No fim tudo é uma coisa só, o antes e o agora.

E Odair José tem música nova? Tem sim. Depois de um tempo longe das paradas, farto dos descaminhos e da picaretagem que assola a indústria da música no Brasil, Odair cedeu ao clamor popular e reapareceu, reabilitado após o veredicto do tempo. Passada a era dos preconceitos, em que uma elite cultural intelectualóide e invejosa apregoou o rótulo de “bregas” nos maiores vendedores de discos do Brasil, Odair emerge sendo o que ele sempre foi: um melodista de mão cheia. (Detalhe: pouca gente sabe que Odair José gravou um disco conceitual nos anos 70, uma opera-rock, qualquer dia eu falo disso).

O que Odair faz não é pra qualquer um. Criar uma estrutura simétrica, coesa, e fazer uma história caber ali dentro. E mais: ser perfeitamente cantarolável, isso sem apelar pros monossílabos infantis da temporada. Nele não há nada industrial, tem uma verdade ali. E tudo continua assim em “Praça Tiradentes” (2012). Talvez seja a mesma praça de "Eu, você e a Praça", de 1973, mas agora o ponto de vista transcende o do narrador: Odair José passa em revista todo o seu universo, simbolizado aqui por uma praça, com todos os seus personagens e seus encontros marcados, transitórios e fugazes. Mais do que romantismo, mais do que o “simples” falar de amor, Odair continua trazendo crônicas íntimas, relatos reflexivos sobre emoções e vivências universais, sem exageros, nem frivolidades. Ao invés de enfeitar o que já existe, Odair José parte de situações reais e do meio delas mostra o que nos move, o que nos torna humanos. O que será que será?


sexta-feira, 13 de julho de 2012

Os 40 anos de Ziggy

 

Cantor: David Bowie
Disco: The Rise and Fall of Ziggy Stardust 
and the Spiders from Mars
Lançamento: 1972

“Sempre estar lá, e ver ele (sic) voltar, não era mais o mesmo, mas estava em seu lugar”. Muita gente lá nos anos 80 deve ter comprado o disco do Nenhum de Nós só por causa dessa música. “Astronauta de mármore” era boa mesmo, melodia forte, cativante ao extremo e sem apelar pros atuais monossílabos. Lembro que passava muito no rádio, a empregada daqui de casa curtia. Ela só não sabia que estava curtindo uma das imortais criações de David Bowie.

Enquanto boa parte do rock nacional se alinhava à MPB, o Nenhum de Nós ia lá nos anos 70 resgatar “Starman”, uma das melhores músicas de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, que está completando 40 anos agora em 2012. Lá naquele 1972, Bowie já não era mais o psicodélico tardio que se arrastava pelo submundo do mainstream: ele se tornara o maior representante de uma das vertentes mais prósperas que despontaram após a virada da década, e este disco não foi só um dos pontos altos de sua carreira, mas de cara se tornou um marco histórico, uma referência.

Fala-se muito das personas que Bowie deu vida durante os anos 70 (a sua melhor década, indiscutivelmente), mas o que deve ser louvado mesmo, no fim das contas, é a sua capacidade criadora. Muito inspirado na poética de Lou Reed e naquele contexto libertário que ficara após Woodstock, Bowie foi desenvolvendo um som praticamente sem fronteiras, indo de um minimalismo acústico à densas baladas ao piano e rocks dos mais ácidos. Juntou peso, dramatismo, tensão, tesão, melancolia, escapismo, ficção científica, decadência e algo de glamuroso, palavra que acabou dando origem a um rótulo –  Glam Rock –, do qual ele mesmo foi o principal representante.

Ao lado do guitarrista Mick Ronson e dos Spiders From Mars, Bowie entraria de vez para o seleto grupo de artistas cujo trabalho continua influente por décadas, e The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars só confirma disso. O disco que conta a saga suicida do roqueiro alienígena trouxe hits que ao longo do tempo teria regravações de Bauhaus, nos anos 80, dos próprios Nenhum de Nós, e depois ainda se tornaria influência básica para o Suede, banda pioneira do Britpop dos anos 90. Apesar da fase não muito inspirada a partir dos anos 80, o relançamento de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars é uma ótima chance de saber por que a obra de Bowie continua viva e celebrada.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A fuga de Paul


Banda: Paul McCarntey & Wings
Disco: Band On The Run
Lançamento: 1973

Band On The Run, como o título já sugere, era o Paul fazendo parte de uma banda, novamente. Após integrar a maior banda de todos os tempos, e praticamente criar o lo-fi gravando discos sozinho, o próximo passo do eterno beatle foi não ser acompanhado por uma banda, de uma forma quase impessoal, mas sim em ser parte de um grupo coeso, o mais homogêneo possível. Isso não o livrou de dar de cara com um horizonte árido nos anos 70, onde as pressões eram imensas: se de um lado havia a expectativa por sucessos pelo menos tão grandes como o que os Beatles lograram, McCartney agora tinha que lutar para se firmar como um artista de rock, ao invés de um cantor pop juvenil.

Por mais que não fosse visto da mesma forma que um Marc Bolan ou um Iggy Pop, a predestinação de Paul para o sucesso acabaria levando seus discos pro topo, e com Band On The Run não deu outra. Contando com a mão pesada dos caras do Wings, o disco mostra já na música título que Paul não estava para brincadeira. Os refrões estão lá, mas não havia a repetição de fórmulas nem a busca pelo caminho mais fácil: era quase uma desconstrução do que se esperava de um artista que havia praticamente criado o dogma da música pop, anos antes, mas que, paradoxalmente, continuava sendo pop. Mudanças de andamento, sintetizadores, vinhetas, peças acústicas e uma sonoridade bem particular marcam este disco que é um dos maiores momentos não só da carreira solo de Paul, mas de todos os anos 70.

Band On The Run faz referência à prisões e perseguições que certos artistas, como os Stones, Byrds, vinham sofrendo já havia algum tempo, e a capa retrata o flagrante de uma fuga de uma penitenciária. Assim como os outros beatles fizeram na época, Band On The Run é também o Paul fugindo de si mesmo, do que tinha sido, e da imagem que havia (se) criado. De fato, não se tratava mesmo de um disco dos Beatles: era um novo capítulo de uma trajetória de um personagem que conhecemos muito bem.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Revendo Norah

Cantora: Norah Jones 
Disco: Little Broken Hearts
Lançamento: 2012 

Numa entrevista recente, o baterista Matt Helders do Arctic Monkeys soltou essa: "Para nós, parece ser óbvio fazer algo diferente quando fazemos um novo álbum. Sei que muitas bandas podem continuar fazendo o mesmo som para sempre, podem ter uma carreira só fazendo isso". E disse mais: "Obviamente muitos fazem isso e funciona. Só que não acho que iríamos querer fazer isso. Não poderíamos fazer um disco como o nosso primeiro novamente, soaria um pouco falso".

De fato, isso tudo parece bem óbvio. Pena que é algo tão pouco compartilhado por aqueles que fazem arte hoje em dia, especialmente aqueles músicos que conseguem atingir o chamado “mainstream”. Talvez por falta de talento, de personalidade, por incompetência mesmo, ou influências mercadológicas, ultimamente tem sido cada vez mais raro vermos alguém se arriscar. Aí surge o bordão: “mas time que tá ganhando não se mexe”. Compreende-se. Mas é também por essa lógica (até um tanto tacanha), de investir na “segurança dos negócios” que vemos um cenário tão desinteressante, estagnado, enfadonho. E até o rock parece ter entrado nessa. Logo ele, que era vanguarda por excelência, que atraia as principais atenções, que era a locomotiva do pop, o "motor das revoluções", o gerador de polêmicas, virou hoje um gueto, um vagãozinho tímido lá atrás, numa época em que Adele, Beyoncé, Bieber e Lady Gaga conduzem o espetáculo.

Mas neste mesmo mundo em que falta testosterona, e quase não se vê coragem para segurar a onda de uma mudança de rumos (com tudo de bom e de ruim que ela possa ter), coube a uma garota de voz docinha mostrar como ainda é possível se reinventar se respeitando, respeitando o ofício e o público. O que Norah Jones fez em seu disco mais recente (Litte Broken Hearts, 2012) é pouco se comparado ao que David Bowie passou os anos 70 fazendo, ou ao que os Beatles fizeram ao trocar o trono do pop pelo experimentalismo que pipocava no underground. Mesmo assim, Norah mostrou que não estava tão acomodada assim naquele nicho pop-jazzistico que lhe deu alguma notoriedade.

Jovem demais para concorrer com Diana Krall, e cult demais pra ficar no mesmo saco de Adele, Norah pra mim sempre pareceu meio deslocada fazendo papel de diva. Agora, a moça parte para um ambiente mais arejado, mais solto, sem a preocupação em seguir cânones sofisticados nem em exibir sua perícia vocal. Isso não significa que a voz não esteja impecável, como sempre, a diferença é que a embalagem, o “clima”, as texturas, fogem dos timbres banais do “piano bar” e ganham uma cara própria, bem particular (a parceria com o produtor Danger Mouse pode ter sido decisiva pra isso). Enfim, se vai tocar na novela ou na Mix é difícil saber, mas me arrisco a dizer - sem nenhum medo - que já é uma das melhores coisas que aconteceram nesse 2012.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

A descoberta de Mimito

Era Mimito, a faca e a cidade vazia. Sua esquina era o front. Àquela hora, cada estalo era um estrondo, cada sibilo era um aviso. Qualquer latido era um sinal para cuidar de sua espreita insone. Não era apenas o sono que não lhe atacava, também o medo havia tempos que ele não experimentava. Isso desde quando fora picado por uma cascavel aos 11 anos e fora salvo após engolir um pouco da saliva de Antônio Beato, um senhor que havia sido curado do mesmo jeito, de uma picada do mesmo tipo, havia mais de setenta anos. Desde então, Mimito ficara conhecido pelas suas extravagâncias, pelo seu destemor diante da vida e de quem fosse. E foi só ouvir que pela cidade andava uma burra-de-padre para que, ele mesmo, se animasse em encontrar a aberração que deixava a todos com o sono intranqüilo, atentos a ferrolhos e traves nas portas. Porque uma coisa é saber que ela existe, que pode existir, outra é saber que tem uma correndo pelas ruas logo depois que o motor da luz é desligado.

Além de todo o medo generalizado, a maledicência corria solta: quem era a mulher que provara do amor proibido do padre e que agora, amaldiçoada, corria ensandecida por dentro das noites empoeiradas transmutada numa besta daquele tipo? Só o padre era que não dava ouvidos para a perfídia, não porquê não quisesse, mas pela surdez já quase totalmente instalada em seus ouvidos de mais de 90 anos. Sem forças nem para sair da cama sozinho, com uma fragilidade latente, como teria vigor para andar metido com aventuras clandestinas com moças despudoradas? Viviam intrigados sob os véus e mantilhas, mas Mimito não queria nem saber disso: entre a suspeita e o medo, a crença e a intriga, o rapaz botou na cabeça que queria ficar frente a frente com a criatura incógnita, e sabe-se lá o que aconteceria depois.

Mimito esperou chegar a madrugada da sexta-feira da Paixão que para enfim por em prática o seu plano. Contava com a sorte que o dia poderia lhe brindar. Os amigos troçavam, a mãe lamentava, a avó alarmada só dizia que há coisas com que não se pode mexer, mas lá foi ele, armado apenas com seu desaforo usual e com a faca do seu pai. Ficou lá, postado na esquina que ficava para a rua central da cidade. Não tinha relógios, mas tinha tempo o suficiente. Quando o motor da luz fora desligado, a cidade toda ganhou um tom brilhante e azulado, como se ela própria fosse a superfície da lua, que estava ali bem baixa e luminosa. Mas foi no meio daquela bruma translúcida, por entre o silêncio oco do sereno, que Mimito começou a escutar um chiado nas pedras mal-encaixadas do calçamento, e o chiado longínquo foi crescendo, e aumentando, virando um ribombar retumbante dentro da cabeça de Mimito, e pelo jeito alguma coisa vinha correndo, e Mimito teve certeza de que aquela só poderia ser a aparição que ainda não tinha aparecido de fato mas de que todos falavam como verdade verdadeira. E na tremedeira pelo sucesso do intento, ofegante com a certeza, Mimito com a faca colada ao peito esperava o momento certo para se lançar diante do que quer que fosse para pelo menos atestar, ele próprio, a natureza do bicho sobrenatural.

Fazendo uma contagem apressada, esperou pela a pisada da coisa que fosse quase que imediatamente anterior àquela esquina, e num salto desbaratado, caiu com os calcanhares duros no meio da rua, com a ponta da faca mirada pro vazio, na direção da burra. Mas, por entre a brancura de camadas de lençóis, ao invés de um ser mitológico, o que Mimito encontrou foram dois olhos grandes e aterrorizados de uma moça morena que se revelou com um pedido trêmulo: “Não diga nada a meu marido, ele mataria o prefeito”. Assim Mimito baixou o braço, e abriu espaço para que mulher do delegado pudesse continuar sua corrida incauta até a sua casa, temendo que alguém lhe visse e que a sua ausência não fosse notada. Mimito nunca contou a ninguém o que realmente andava a trotar pela cidade naquelas noites sufocantes. Foi assim que ele compreendeu que a vida, e os amores, são como móveis com mais gavetas do que se pode imaginar.

domingo, 18 de março de 2012

Tardio



Depois de 67 anos, imaginando que já esgotara seu quinhão de emoções possíveis numa vida de parcimônia, Amadeu se viu sozinho dentro da casa, batendo cabeça com um tipo de saudade que nunca experimentara. Foi numa tarde, logo depois que Netinho fora embora com sua mãe Eunice. Num fato inédito em sua vida adulta, Amadeu ficara dois meses na companhia de alguém, o garoto Netinho, enquanto a mãe dele fazia uma viagem que de tão demorada se tornaria penosa para o menino. Quando voltou, Eunice era só gratidão para Amadeu, ainda mais porquê, ao que lhe parecia, o menino vinha sendo muito bem tratado ali. Amadeu, sem saber onde pôr as mãos, entre feliz e emocionado, dizia com uma sofreguidão que parecia timidez que Eunice poderia deixar o seu filho com ele sempre que precisasse, pois seria um favor de amigos e vizinhos, um bem pela harmonia da vizinhança.

Mas quando a porta bateu às suas costas, Amadeu deu de cara com aqueles cômodos imensos de tão vazios, de paredes altíssimas, e um silêncio sibilante, agora sem a presença de Netinho. Foi então que sentiu seu interior como se minguasse e minguasse, murchando e repuxando seus tecidos e provocando um dor que quase lhe deixava sem forças para respirar. "Que vida era aquela que eu vivia até semanas atrás?", perguntava-se em seu abandono. Como não se incomodava com uma rotina tão mesquinha e despropositada, sem compartilhar nada com ninguém? Sem viver para cuidar de ninguém? Só bastou um breve convívio com o garoto para que sentisse o sabor incomparável da humanidade.

Foi tudo tão e tão pouco, tantas refeições preparadas com todo o cuidado, tantas conversas, tantos sorrisos, tantos olhares, tantas noites, tantos abraços, e beijos, e carícias, e carinho, e o toque de mãozinhas tão frágeis, e o hálito doce e quente, e a respiração apressada de pássaro acuado, que Amadeu chegou a esquecer que um dia a mãe de Netinho retornaria para levá-lo e então não seriam mais assim inseparáveis. Mas o dia veio, e como se saísse de uma embriaguês, lembrou-se de que Netinho partiria para a sua vida de menino, enquanto ele ficaria com o horror de ter tudo, a casa e a vida, só para si, novamente. Na cama gelada, Amadeu tentava não pensar em quantas noites se passariam até que o peso da falta se dissipasse, e enfim tivesse de volta a sua velhice livre de pensamentos intranqüilos. Antes de pegar no sono, jurou para si mesmo que se aquilo fosse amor era algo que não queria sentir nunca mais.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...