domingo, 18 de março de 2012

Tardio



Depois de 67 anos, imaginando que já esgotara seu quinhão de emoções possíveis numa vida de parcimônia, Amadeu se viu sozinho dentro da casa, batendo cabeça com um tipo de saudade que nunca experimentara. Foi numa tarde, logo depois que Netinho fora embora com sua mãe Eunice. Num fato inédito em sua vida adulta, Amadeu ficara dois meses na companhia de alguém, o garoto Netinho, enquanto a mãe dele fazia uma viagem que de tão demorada se tornaria penosa para o menino. Quando voltou, Eunice era só gratidão para Amadeu, ainda mais porquê, ao que lhe parecia, o menino vinha sendo muito bem tratado ali. Amadeu, sem saber onde pôr as mãos, entre feliz e emocionado, dizia com uma sofreguidão que parecia timidez que Eunice poderia deixar o seu filho com ele sempre que precisasse, pois seria um favor de amigos e vizinhos, um bem pela harmonia da vizinhança.

Mas quando a porta bateu às suas costas, Amadeu deu de cara com aqueles cômodos imensos de tão vazios, de paredes altíssimas, e um silêncio sibilante, agora sem a presença de Netinho. Foi então que sentiu seu interior como se minguasse e minguasse, murchando e repuxando seus tecidos e provocando um dor que quase lhe deixava sem forças para respirar. "Que vida era aquela que eu vivia até semanas atrás?", perguntava-se em seu abandono. Como não se incomodava com uma rotina tão mesquinha e despropositada, sem compartilhar nada com ninguém? Sem viver para cuidar de ninguém? Só bastou um breve convívio com o garoto para que sentisse o sabor incomparável da humanidade.

Foi tudo tão e tão pouco, tantas refeições preparadas com todo o cuidado, tantas conversas, tantos sorrisos, tantos olhares, tantas noites, tantos abraços, e beijos, e carícias, e carinho, e o toque de mãozinhas tão frágeis, e o hálito doce e quente, e a respiração apressada de pássaro acuado, que Amadeu chegou a esquecer que um dia a mãe de Netinho retornaria para levá-lo e então não seriam mais assim inseparáveis. Mas o dia veio, e como se saísse de uma embriaguês, lembrou-se de que Netinho partiria para a sua vida de menino, enquanto ele ficaria com o horror de ter tudo, a casa e a vida, só para si, novamente. Na cama gelada, Amadeu tentava não pensar em quantas noites se passariam até que o peso da falta se dissipasse, e enfim tivesse de volta a sua velhice livre de pensamentos intranqüilos. Antes de pegar no sono, jurou para si mesmo que se aquilo fosse amor era algo que não queria sentir nunca mais.

Um comentário:

Anônimo disse...

Divino!
Incrível como, apenas no primeiro parágrafo, você apresenta o personagem, seus aspectos psicológicos, o ambiente etc. E isso sem deixar o texto enfadonho.
Magnífico!

ailton

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