domingo, 26 de dezembro de 2004
O fardo
Evaristo nunca perdera sequer um par ou ímpar. Sua sorte chegava a ser irritante, causava inveja, infortúnios, desconfianças. Sempre passara por trapaceiro, enganador, mas não era, ele sabia que não era. A droga da sorte era um dom seu, inexplicável, ele não tinha culpa de sempre ganhar tudo que concorria. Numa noite, depois de uma vida cheia de sobressaltos e fugas, pegou tudo de valor que tinha e se meteu num cassino.
As fichas tilintavam nervosas nas mãos. Encostou a barriga vazia na banca e o croupier lhe olhou com seus olhos baços, era um olhar sem olhos que era o olhar do próprio Azar. "Façam suas apostas", gritou ele. Rouge, noir, passe, manque, zero, tanto fazia, ganharia de qualquer jeito. Dispôs as fichas formando uma cruz e esperou a bolinha parar. Horas depois, possuía uma quantidade de fichas tal que não se podia carregar. Pitaqueiros, prostitutas de luxo, outros jogadores, todos vinham para perto, todos queriam acompanhar os lances daquele milagre profano. Nunca se soube nada como aquilo naquele cassino. Pôquer, roleta, trent-et-quarante, estava ganhando tudo, espetacularmente. Sua sorte parecia não ter limites, quando se deu conta já era um milionário. Com os olhos inundados de luz, Evaristo nunca apertou tantas mãos, nunca foi tão paquerado, nunca foi tão querido. Ele sabia que aquela era a sua noite triunfal, sua noite gloriosa, a noite da sua desgraça.
Ainda não tinha amanhecido quando Evaristo fora encontrado num beco com três tiros no peito. Havia sido como ele previra. Fazer o que ele fez naquela noite não daria noutra coisa, mas finalmente seu tormento chegara ao fim. Sabia que com aquela sorte toda jamais teria o amor verdadeiro de alguém.
domingo, 19 de dezembro de 2004
Conto de Natal
Foi assim: um menino, devia ser menino de rua, pelo jeito era mesmo, todo maltrapilho, sujo, tinha entrado na loja sem querer, na verdade queria, mas não podia, nunca pode, acabou indo junto no tumulto, tem muita gente nas lojas nessas épocas, aí ele entrou na loja, ninguém notou ele, e ele ficou lá, não roubou nada, não tocou em nada, quando foi sair, viu que caiu alguma coisa da bolsa de uma mulher, e ele correu, apanhou, era uma blusa, foi devolver, e saiu da loja, e disparou o alarme, o lacre da blusa, e a mulher sumiu, todo mundo parou, e o moleque também, o alarme gritando, todo mundo parado, o segurança veio, viu o moleque, e o moleque viu ele, e ficou com medo, e saiu correndo, e tropeçou na blusa, e caiu na calçada, e o segurança chegou, levantou o cacetete, e começou a bater, e bateu, bateu muito, na cabeça, no nariz, nas costelas, e o moleque chorando, esperneando, coitado, apanhou tanto, sagrou até, e era só um menino, uma criança, e em pleno natal, o natal das crianças, era véspera, e ninguém ajudava, ninguém nem olhava, que natal é esse, cadê o espírito natalino, cadê o Papai Noel, cadê o menino Jesus?
domingo, 12 de dezembro de 2004
Reprise
- Quanto?
- Vinte reais.
- Toma... Amanhã você pode vir um pouco mais cedo?
- Tá.
- Ei, será que lá não tem outra mais gostosa, não?
- Ué, enjoou, foi?
- Não, não... Eu tô gostando, mas eu queria variar, sabe...
- Sei...
- Bom, de qualquer jeito, te espero amanhã.
- Tá ok.
A senhora que ouvia do outro lado da parede pensou tudo, menos que o seu vizinho estivesse falando com um entregador de pizza. Infelizmente, era com uma de calabresa que iria pra cama outra vez.
::: Mais tema único em alguns dos links ao lado.
- Vinte reais.
- Toma... Amanhã você pode vir um pouco mais cedo?
- Tá.
- Ei, será que lá não tem outra mais gostosa, não?
- Ué, enjoou, foi?
- Não, não... Eu tô gostando, mas eu queria variar, sabe...
- Sei...
- Bom, de qualquer jeito, te espero amanhã.
- Tá ok.
A senhora que ouvia do outro lado da parede pensou tudo, menos que o seu vizinho estivesse falando com um entregador de pizza. Infelizmente, era com uma de calabresa que iria pra cama outra vez.
::: Mais tema único em alguns dos links ao lado.
terça-feira, 7 de dezembro de 2004
Quando a farpa se mexe
O prédio todo já sabia das duas moças que haviam alugado um dos apartamentos. O burburinho agora era a respeito do parentesco delas. Como ninguém averiguaria qual era, de fato, alguém sugeriu algo e os demais deduziram: eram lésbicas.
No apartamento bem acima do das novatas, a família jantava quando a menina se dirigiu a mãe:
- Sabe aquelas duas daqui de baixo?
- O quê que tem elas? Elas mexeram contigo? Olha, se eu souber que você andou de conversa com aquelas duas nojentas...
- Eu vi elas hoje de manhã...
- Não devia nem ter visto! Mas, e daí? O que houve?
- Elas tavam se beijando...
- É o quê? O que foi que você disse? Pelo amor de Deus! Tá vendo, Antônio? Eu sabia, eu sabia! É por isso que quando o povo fala ou é ou tá pra ser! Que horror! Amanhã mesmo eu vou falar com a síndica! Não é possível! Como podem aceitar esse tipo de gente num prédio de família? E nossas crianças? Expor nossos filhos a esse tipo de coisa! Ah, amanhã a síndica vai ouvir!
Depois da explosão da mãe, a menina fala baixinho, olhando pro fundo do prato:
- Eu nunca vi a senhora beijando o papai...
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