domingo, 3 de março de 2013

Fragmento (1)

Nas frontes ardia o calor de quarenta sóis incandescentes, e pelas pernas, a dormência começava a apossar-se do corpo. Caído ali, despencava no profundo esquecimento, deixando o corpo alquebrado para trás. Ia soltando-se de si mesmo, resignado, e já quase nem percebia o gosto do sangue na boca, o cheiro do sangue nas narinas, o zumbido do vento ralo nos ouvidos, e a areia áspera onde afundava. Via na escuridão em que estava metido que o seu destino perdia as forças junto com a respiração. Mas ao longe, na distância das amplidões, o chocalho retiniu, incerto, quase como um suspiro, suficiente para lhe devolver a vida e lhe pôr de pé novamente. Os passos eram incertos, mas o caminho era a busca. Foi tateando, seguindo os arpejos longínquos que ele nem sabia se de fato ouvia ou lembrava.

A morte do pai foi a primeira. Depois da mãe, foram as cabras, as vacas e enfim estava ele, o coche, o cavalo e a rês bezerrinha. A magreza dela era a própria magreza das perspectivas, da esperança, de futuro para a sua linhagem. Ainda assim cuidava dela com todo zelo. Espevitada, rês bezerrinha deu um tranco na porteira da cerca e entrou no labirinto da catingueira. Era só um cochilo rápido, não era pra dar nisso tudo, a fuga da garrota, o resto do legado e memória do seu pai, que agora ia longe, longe. Jogou-se em cima do cavalo, chapéu, gibão, e foi-se prendendo o choro. Numa virada mal feita, topou com um cacho de chique-chique e foi a última coisa que viu. O cavalo continuou correndo, e ele ali, caído, deitado, tremendo, com a cara espetada, os olhos cegados, e o pensamento só na rês bezerrinha, onde estaria. Passou dias, ou horas, até que se levantou num repente quando o fiapo do chocalho clareou a ardência dos espinhos e da sua esperança.


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O rito da Rita



Rita Lee & Tutti-Frutti
"Fruto Proibido"
1975
 
Certa vez, Rita Lee disse que ter saído dos Mutantes foi a melhor coisa que podia ter lhe acontecido. Apesar de ter passado algum tempo para se dar conta disso, na época tudo foi bastante doloroso, como é em todo rito de passagem. No caso da Rita, esse rito só se completaria alguns anos mais tarde, com o lançamento de Fruto Proibido (1975)

A passagem da escola pra universidade, daí para o emprego, casamento, tudo isso acaba implicando em desligamentos, readaptações, e alguma dose de sofrimento. Com Rita, deixar o seu grupo original foi o seu passaporte para a maturidade, da adolescência psicodélica com os Mutantes para a vida adulta ao lado do Tutti-Frutti. Foi ainda às voltas com esse clima de separação, mudança e partida, e a aceitação plena desse novo momento, que Rita Lee compôs algumas de suas melhores músicas de sempre: “Agora só falta você”, “Esse tal de Roque Enrow” (com Paulo Coelho) e “Ovelha Negra” (seu maior hit).

Mas pra chegar nesse ponto não foi assim de repente. Ainda na época dos Mutantes, vieram alguns discos solo, pra pegar confiança. Depois, com o Cilibrinas do Éden e Atrás do porto tem uma cidade, afinou o discurso, a embocadura, e chegou pronta em Fruto Proibido. Sucesso total. A pegada stoneana da banda de Luis Carlini foi a embalagem ideal para a poética de Rita Lee, que aquelas alturas andava fascinada pelo Glam Rock de Bowie e Marc Bolan. Mas ao contrário deles, Rita não propunha fantasias pop decadentes e escapismo: ela concentrava sua narrativa em torno de fortes figuras femininas (como em “Luz Del Fuego”), que parecem ser metáforas de uma mulher que ela procurou em si mesma, após o baque da sua demissão dos Mutantes.

Entre o instrumental forte do Tutti-Frutti, Rita encaixava marotamente o seu piano com o charme que era também uma das marcas do seu humor, bem feminino, desde os tempos tropicalistas. Mas nada disso parecia demandar muito esforço. Fruto Proibido não nasceria de exaustivos exercícios mentais, como o rock progressivo cabeçudo que seus ex-parceiros haviam adotado. O disco era a expressão pura e espontânea da criatividade de uma artista que não teve medo de exorcizar velhos demônios publicamente. O que acabou dando certo. De cantora promissora, Rita se tornaria uma estrela nacional, catapultada pelo êxito de Fruto Proibido, que é um dos grandes discos brasileiros de todos os tempos. (aqui)

domingo, 13 de janeiro de 2013

Destino crônico

“Parece um boneco”, disse a menina ao passar com a mãe ao lado do caixão do ditador. Ainda que imperceptíveis para a maioria dos chorosos, essas palavras, ditas sem malícia, sem leviandade, quase como um muxoxo, conseguiram sair altas o suficiente para chegarem aos ouvidos de um dos Chefes do Estado Maior que estava ali velando o seu comandante de uma vida inteira. Políbio Suarez, vencendo o aperto dos botões do seu fardão e o peso das suas dezenas de insígnias, abandonou o seu posto entre os convidados de honra para aproximar a vista do ditador morto, para constatar, com curiosidade, de onde a menina tirara tal disparate. Ainda naquela noite, após o épico enterro do general, com praticamente todo o país debruçado sobre a cova de mármore, - talvez mais pra se certificar de que ele tinha ido de uma vez do que para exatamente guardar uma última imagem - , Políbio reunira às pressas os seus companheiros de armas e, com um murro na mesa, iniciou a reunião extraordinária. “Chega de farsa. Onde o General está escondido?”, bradou para o prédio todo escutar.

A pergunta de Políbio foi o estopim para a maior crise de poder jamais enfrentada por aquele pequeno país em seus confusos 500 anos de história. Após inúmeras discussões, missões diplomáticas, reuniões, e bate-bocas, os nobres homens não souberam chegar a um consenso sobre o paradeiro do General, já que para alguns ele saíra em sigilo do país, enquanto que outros ainda carregavam no braço a fita preta em sinal de luto. O certo é que depois que o General, já com a cabeça raspada, comunicou a nação que estava com uma doença muito grave, suas aparições públicas nos últimos dez anos foram ficando cada vez mais raras, ao passo que os seus decretos, muitas vezes estapafúrdios, nebulosos, saíam cada vez mais freqüentemente e cada vez com menos rejeição da maioria. Isto porquê, apesar de todas as ameaças de golpe e da popularidade quase subterrânea, para aquele país de brutos tão amáveis não convinha contrariar o General, pois, ao que se sabia, ele já estava às portas da morte.

Cerca de sete meses após o enterro do general, com a nação à deriva e com o governo nas mãos de um conselho onde um membro mal lembrava dos nomes dos outros, a população fora convocada quase que em tom de ameaça para ir às urnas escolher o novo mandatário do país, numa lista de candidatos que ninguém conhecia. A maioria dos votantes sequer sabia ler o bastante para escolher uma das 17 opções na cédula, algo que nem imaginavam para que serviria. Depois de mais oito meses de apuração, o novo comandante daquele país, a quem deveriam chamar de presidente, desfilava em carro aberto pelas ruas da capital, diante de uma população que comemorava sem saber ao certo porquê. E o cerimonial nem se preocupou em manter a massa muito distante do carro presidencial, pois àquela distância, dificilmente achariam alguma semelhança entre aquele que acenava sorridente e o antigo general, de quem ninguém nunca havia chegado perto e que todos achavam que tivesse morrido.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Fazendo a corte


King Crimson
"In The Court Of The Crimson King"
1969

Os anos 60 chegavam ao fim e a grande massa amorfa de possibilidades que se abrira no rock'n'roll ia se acentando em dois flancos bem definidos. Um deles era o Blues Rock, que tinha no Cream, Blue Cheer, Deep Purple e no novato Led Zeppelin as forças motrizes que originariam o Hard Rock e o Heavy Metal pouco depois. No outro polo, o psicodélico, Robert Fripp emergiria, e com a sua nova banda, o King Crimson, daria o passo adiante rumo a uma das tendências mais fortes da década seguinte: o Rock Progressivo.

Fazendo uma comparação, a Psicodelia havia levantado a bola - era só colocar pra dentro. Foi o que o King Crimson fez, acertando cheio, no ângulo. De posse do que já estava no ar (influências jazzísticas, estruturas extensas, orquestrações), Fripp e Cia. juntaram as pontas soltas desse circuito e criaram uma configuração que seria levada ao limite anos depois. Tamanha a maestria, ironicamente o Crimson nunca mais atingiria o equilibrio formal que tornou In The Court Of the Crimson King (1969) um clássico. Desde os timbres rascantes da guitarra de Fripp, os arpegios da bateria de Giles, a sessão de sopros, até o vocal de Greg Lake, nada se sobressai, nada joga apenas ao próprio favor: é um conjunto em seu sentido pleno.

Em meio a todo o rigor instrumental que já se insinuava, fica evidente a riqueza melódica do grupo em músicas mais calmas como "Epitaph" e "I Talk to the Wind", que sozinhas já pagariam o disco. É certo que In The Court Of the Crimson King ainda possui ecos de psicodelismo, mas estes são apenas resquícios de uma pele já trocada. Como fora com outras bandas da mesma lavra (Jethro Tull, Yes), as cores, os insights e as experimentações saíam de cena em favor da razão, da performance e da extravagância. Começava assim a era dos excessos, também conhecida como anos 70. (aqui)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A invenção dos anos 80


Joy Division
"Unknown Pleasures" 
1979

Em 1974, o Tangerine Dream lançava “Phaedra”, um dos maiores “clássicos obscuros” da história. O disco consistia basicamente numa grande experimentação com sintetizadores, e na época, dado o estranhamento geral, o líder da banda, Edgar Froese, chegou a declarar que em dez anos todo mundo estaria usando sintetizadores. Em 1977, com “Low”, David Bowie dava início a sua “Fase Berlim”, trazendo para o universo pop sonoridades da cena Kraut Alemã. Uma cena que revelara o Can, Faust, Kraftwerk e o próprio Tangerine Dream. Em 1979, o Clash lançava o seu “London Calling”, a prova final de que o “do-it-yourself” do punk poderia ir além dos três acordes.

É nesse ambiente de fim de anos 70 que surge o Joy Division. Na fria e fumacenta Manchester, uma loja de discos decide investir naquela banda que tinha a urgência punk do The Clash, os climas dos sintetizadores do Kraftwerk, e as temáticas obscuras em contraposição a outra facção emergente da New Wave, o New Romatic. Daí nasceu “Unknown Pleasures”, disco que de cara obteve respeito do público e da crítica. A personalidade perturbada do líder da banda, Ian Curtis, não só foi determinante para a formação da identidade da banda como para outros que ajudaram a criar o som dos anos 80, como The Smiths, The Cure e New Order. 

Além de praticamente inaugurar o Post-Punk, uma espécie de Segunda Geração Romântica dentro do Punk, o Joy Division ajudou a fundar toda uma tradição e uma cena que mais tarde revelaria nomes como Stone Roses, Happy Mondays, Inspiral Carpets e Oasis. Isto sem contar a influência no rock alternativo no outro lado do Atlântico, no qual o REM seria um dos que logo despontaria. Mais de 30 anos depois, “Unknown Pleasures” ocupa merecidamente um lugar entre os melhores álbuns de todos os tempos, influenciando e sendo copiado até hoje. (aqui)

(O primeiro nome do Joy Division foi Warsaw, inspirado na música “Warszawa”, de David Bowie, presente no disco “Low”. Já o nome Joy Division foi inspirado nas divisões militares - divisão de cavalaria, divisão de resgate, etc. A “Divisão de divertimento” – Joy Division era composta por prostitutas encarregadas de “alegrar” as noites dos fronts. Só isso já diz muito do caráter da banda. Um som enérgico, capaz de divertir, mas que traz em si uma carga gigantesca de traumas e tormentos.)

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Os anos 80 que (quase) ninguém conhece

Frequentemente chamada de “a década perdida”, os anos 80 parecem ser aquela década que todo mundo faz questão de esquecer, e claro que na música não seria diferente. Se de um lado o pop atingia o seu ápice industrial fazendo ídolos como carros numa linha de montagem, do outro o “roque pauleira” com cheiro de laquê chafurdava na breguice do hard metal machão. Pelo meio, ainda se ouvia o New Romantic com suas ombreiras, e mais um monte de vertentes que se apoiavam no som de tecladeiras para evocar uma pseudo-modernidade dançante (era o Synth Pop). Correndo por fora (mas bem por fora meeesmo, e por baixo), o Rock Inglês lá do seu gueto escuro já influenciava o rock alternativo americano com o Pos-Punk, e lançava as bases do que se chamaria de Indie, nos anos 90.

Não era um cenário muito animador, de fato. Muita artificialidade, muita cosmética, muita tecnologia e pouca criatividade. Mas apesar de tudo, de todo o aparente vazio criativo (vencido na década seguinte), os anos 80 ainda escondem no íntimo de suas mais recônditas sombras alguns discos que são verdadeiras pepitas perdidas sob toneladas de escombros de preconceitos. Reconsiderar é sempre um exercício que pode ter resultados surpreendentes, e isso vale também para aquela década tão desprestigiada. Sem mais conversa, abaixo cinco discos dos anos 80 que merecem atenção:


Dexys Midnight Runners - Searching For The Young Soul Rebels (1980)

Talvez um dos discos mais bem gravados da época (ao lado de outros como Ocean Rain, do Echo & The Bunnymen). Partindo por um caminho totalmente diverso do da maioria, longe do senso comum das paradas, os Dexys Midnight Runners fizeram um disco traziam para o ambiente da New Wave os metais do Soul e do Ska, tudo com toques do pop setentista. Um grande disco, pra se ouvir em alto volume. (aqui)


Violent Femmes – Violent Femmes (1983)

O Violent Femmes com sua pegada acústica parece antecipar o que depois se chamaria Twee Pop, uma vertente mais crua e acústica dentro do indie. E é essa crueza que vai dando tom ao disco inteiro, que transcorre quase como um misto do minimalismo do Velvet Underground e da raiva do The Clash. É um trabalho sem paralelo, considerando-se que os ingleses do The La's e os americanos do Beat Happening só apareceriam bem depois. (aqui)



Aztec Camera - High Land, Hard Rain (1983)

Algo como “E se os Smiths fossem escoceses?”. Sem tanto apelo roqueiro, com muitos violões, e um instrumental firme, a banda investia num certo groove, mas sem perder o alvo do pop, que era bastante envolvente. Era uma banda "do bem" para pessoas idem. (aqui)


Lloyd Cole and The Commotions - Rattlesnakes (1984)

A exemplo dos próprios Smiths e do Aztec Camera, a banda de Lloyd Cole era uma das raras que rejeitavam os aparatos eletrônicos e resgatavam a importância do violão, que aquelas alturas parecia esquecido. Mas “Rattlesnakes” passa longe de ser minimalista, tem orquestras, e um band leader com ares de um Bob Dylan new wave. (aqui)


Glorious Din - Closely Watched Trains (1987)

A década já corria para o final quando aparece esse disco que o que tem de raro, tem de pungente. Extremamente cru, ele parece ser um elo perdido entre Ian Curtis (o conturbado líder do Joy Division) e de Michel Stipe (do REM). Post-Punk do bom, obscuro. Um achado. (aqui)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O luto no Oriente é branco


The Beatles
"The Beatles" (a.k.a The White Album)
1968

1968. Pela definição de Zuenir Ventura, o ano que não terminou. Em maio, uma onda de protestos varria a França com uma violência sem precedentes. Àquelas alturas, Che e Luther King estavam mortos, as atrocidades da Guerra do Vietnã vinham à tona, as ditaduras na América Latina recrudesciam, a repressão à juventude ganhava ares de guerra civil, e o mundo entrava numa convulsão que não se via desde que Hitler avançara sobre a Polônia. Depois de uma década tomada por um sentimento de otimismo, a geração do pós-guerra se viu imersa num mar de confusão e incerteza, e nenhum outro disco conseguiu fotografar tão bem esse momento quanto The Beatles (1968).

Mas The Beatles, também conhecido como “White Album”, não chega a ser um disco de protesto, de fato. As mensagens estão lá, só que num subtexto quase subliminar, sutil. Críticas ao capitalismo, referências à corrida armamentista e ao clima de revolução permeiam o disco de uma forma que não chega a ser panfletária, mas que mostra que eles não estavam omissos. A capa toda branca era um sinal de que alegria das cores lisérgicas já não fazia mais sentido. Após marcarem a Psicodelia com o Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1967), onde encarnaram uma banda de fanfarra fictícia, os Beatles não só abandonam as personas como também retornam ao rock mais cru que podiam fazer, numa mostra de que a realidade triunfava sobre o idealismo hippie.

Se havia tensões influenciando a banda de fora pra dentro, internamente o grupo não ia bem das pernas. Depois da desilusão com um guru de araque, da morte do empresário, da saída do produtor George Martin, e da quase saída de Ringo, os Beatles entram num ritmo de gravações onde o individualismo se tornara evidente. Cada vez mais distantes uns dos outros, trabalhando em estúdios separados, ninguém mais compunha junto, e ao final de uma briga de egos, decidem lançar 33 músicas naquele que se tornaria o único disco duplo da banda. 

Reggae, blues, folk, ragtime, baladas, concretismo, rock, teve espaço para tudo no disco. Mas ao contrário de Revolver (1966), os Beatles aqui não procuraram uma direção enquanto grupo, tateando entre a tradição e o futurismo. Em The Beatles, eles experimentavam a liberdade criativa que nunca tiveram, longe de qualquer modismo ou imposição de mercado, e ao buscarem caminhos individuais, fizeram da diversidade o conceito do álbum. Foi um disco regado à angústias e choques vindos de todos os lados, e como todos os grandes feitos artísticos, conseguiu se sintonizar às verdades do seu tempo. (aqui)



Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...