domingo, 3 de março de 2013

Fragmento (1)

Nas frontes ardia o calor de quarenta sóis incandescentes, e pelas pernas, a dormência começava a apossar-se do corpo. Caído ali, despencava no profundo esquecimento, deixando o corpo alquebrado para trás. Ia soltando-se de si mesmo, resignado, e já quase nem percebia o gosto do sangue na boca, o cheiro do sangue nas narinas, o zumbido do vento ralo nos ouvidos, e a areia áspera onde afundava. Via na escuridão em que estava metido que o seu destino perdia as forças junto com a respiração. Mas ao longe, na distância das amplidões, o chocalho retiniu, incerto, quase como um suspiro, suficiente para lhe devolver a vida e lhe pôr de pé novamente. Os passos eram incertos, mas o caminho era a busca. Foi tateando, seguindo os arpejos longínquos que ele nem sabia se de fato ouvia ou lembrava.

A morte do pai foi a primeira. Depois da mãe, foram as cabras, as vacas e enfim estava ele, o coche, o cavalo e a rês bezerrinha. A magreza dela era a própria magreza das perspectivas, da esperança, de futuro para a sua linhagem. Ainda assim cuidava dela com todo zelo. Espevitada, rês bezerrinha deu um tranco na porteira da cerca e entrou no labirinto da catingueira. Era só um cochilo rápido, não era pra dar nisso tudo, a fuga da garrota, o resto do legado e memória do seu pai, que agora ia longe, longe. Jogou-se em cima do cavalo, chapéu, gibão, e foi-se prendendo o choro. Numa virada mal feita, topou com um cacho de chique-chique e foi a última coisa que viu. O cavalo continuou correndo, e ele ali, caído, deitado, tremendo, com a cara espetada, os olhos cegados, e o pensamento só na rês bezerrinha, onde estaria. Passou dias, ou horas, até que se levantou num repente quando o fiapo do chocalho clareou a ardência dos espinhos e da sua esperança.


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