domingo, 29 de outubro de 2006

A doença


Vinte e três anos depois, Vicente acordava no meio da noite com o mesmo pavor de quando viu os filhos da vizinha. Desde que nascera, Vicente freqüentava com a mãe a casa de Catarina, até que começou a se perguntar porque os garotos viviam trancados no quarto. Sempre que chegavam visitas, Catarina demorava muito para abrir a porta, na certa procurando os filhos pela casa para leva-los para o quarto. Era lei: enquanto havia visitas em casa, eles ficavam trancados. Vicente nunca passava da porta, às vezes sua mãe entrava, fazia algum gracejo trivial, e saía rapidamente com um semblante que era difícil qualificar. Um tempo depois, Vicente conseguiu arrancar de sua mãe uma informação que só lhe intrigou mais: "eles são doentes". Mas que raio de doença eles tinham para que ficassem sempre isolados? Era estranho também o fato de eles não estarem em nenhum dos inúmeros porta-retratos e nem nos álbuns. Falava-se deles, às vezes, e só. Imaginou que sua dona Catarina sentisse muita vergonha do que quer que os filhos tivessem, para impedir que um mínimo sinal deles aparecesse.

Acabou concluindo que os dois tinham problemas mentais. "Cosme, Damião, olhem quem está aqui: é o Vicente. Dêem bom dia para ele", dizia Catarina provocando uma conversa entre os filhos e Vicente, ele do corredor, os gêmeos dentro do quarto. E o jeito que eles falavam era muito estranho, as próprias vozes já eram muito esquisitas, eram esganiçados, riam, gritavam, discutiam, choravam e se calavam de repente. Como eram incapazes de conversar normalmente, Vicente acreditou na insanidade deles.

Mas ele queria vê-los. O que poderia haver demais nisto? Até onde sabia, doenças mentais não eram contagiosas, bastaria guardar um pouco de distância e não haveria risco nenhum. Vicente insinuou algo para Catarinha, e ela fingiu não ter entendido. Sua mãe desconversou quando interpelada, disse que tem coisas que não valem a pena. Aí foi ele quem não deu ouvidos. No domingo seguinte, quando foi com sua mãe à casa de Catarina, Vicente inventou que tinha algo para fazer e saiu. Certificou-se de que ninguém lhe via, contornou a casa, entrou pela cozinha e se escondeu na dispensa. Ouviu quando sua mãe se despediu de Catarina e ficou esperando os eles serem soltos. Quase duas horas depois, ouviu os garotos chegando na cozinha. Abriu uma brecha na porta e viu. Os dois rapazes, colados, do ombro até a cintura, e como um dos troncos era menor e estava um pouco à frente, a impressão era de que fosse um corpo com duas cabeças. E babavam muito, olhando para as coisas como que entorpecidos. Meses depois, um dos gêmeos perguntou a mãe pelo garoto que sempre ia lá. "Ele está doente", respondeu.

10 comentários:

Luís Venceslau disse...

sinistro, muito sinistro.

Januário

Luís Venceslau disse...

eu vi, mas não li. Falta de tempo.

45iso | Homepage

Luís Venceslau disse...

luis. luis. respeite o januário! (juro que ia escrever isso mesmo antes de ter visto o comentário ali abaixo!). gostei desse, viu? sabe o que eu acho (metida que sempre sou)? que você limpou mais o estilo aqui. cortou uns tantos adjetivos, uns apêndices pesados, e agora fluiu maravilha! gostei mesmo.

liuba

Luís Venceslau disse...

agora eu mesma pergunto: e daí, Liuba? e digo mais: deixa de ser pedante, fia.

liuba

Luís Venceslau disse...

hehe agora q me toquei da coincidencia da musica de gonzagao com januario de oliveira (intencao original)

Bruno

Luís Venceslau disse...

oxe, és tu?

Liuba

Luís Venceslau disse...

xifópagos! eu sei de um caso de um gêmeo xifópago q processou o outro por invasão de privacidade.

45iso | Homepage

Luís Venceslau disse...

Que conto massa! Uma história assustadora! Só tenho amigo contista - aliás meu irmão também... Sobrou Breno, um mero redator.

Breno | Homepage

Luís Venceslau disse...

ou um dublê de redator. um red-ator

Bruno

Luís Venceslau disse...

ailton disse e eu estava indo ver minhas anotações de penal para ver que nome se dava a isso... "irmãos xifópagos: absolvição e condenação versus caráter personalíssimo da pena - solução: é impossível desconsiderar o consentimento no crime". // uma lembrança que o persegue há vinte e três anos? não vou nem comentar... passei anos sonhando com dois filmes.

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