No momento que viu a gaiola com o menino dentro, Carmelita esqueceu-se de tudo. Esqueceu das mais de seis horas de viagem, do ônibus caquético que lhe trouxera até ali, de sua madrinha que não via havia quase trinta anos, de tudo. A madrinha, indiferente, nem percebeu a consternação em que Carmelita se meteu ao dar com os olhos diáfanos do menino por trás das grades. Ele não tinha o rosto retorcido e aziago dos encarcerados; tinha, sim, traços tão ternos e um semblante tão amável que congestionaram Carmelita como toda a comoção de seus instintos maternais. Apesar da condição, Carmelita não via nele rastros de tristeza, pelo contrário, trazia até uma certa luz no rosto, algo de plácido. Embotada nas palavras, Carmelita perguntou o que significava aquilo e a sua madrinha sem tirar os olhos do bastidor lhe respondeu simplesmente que "era assim mesmo". A crueza da resposta lhe devolveu a razão, e Carmelita quis aprofundar o assunto. Com candura, sua madrinha foi lhe guiando até a porta, recomendando descanso da viagem sofrida e dizendo que depois conversariam mais.
Carmelita intrigou-se mais com a forma como a sua madrinha fugiu da explicação do que propriamente com o menino enjaulado. Já no hotel, perturbou-se quando lembrou de ter visto pratos, cascas e migalhas no chão da gaiola, e ela compreendeu que nem pra comer ele saía dali. Passaram-se alguns dias e Carmelita continuou encontrando o menino dentro gaiola nas vezes que retornou à casa da madrinha. "Mas um castigo não pode durar tanto!", pensava. Nesses dias que se seguiram, viu muita gente passar pela casa de sua madrinha sem que ninguém fizesse menção à presença do menino, sem que sequer olhassem para a gaiola no canto da sala. Depois de algum tempo, e de tanto a sua madrinha evitar o assunto, Carmelita passou a abordar as vizinhas mais freqüentadoras, que lhe davam as mesmas respostas, que "era assim mesmo, minha filha, deixe ele". Depois de algumas noites sem descanso, com a visão torturante dos olhos infantis atrás daquelas grades, Carmelita concluiu que aquelas mulheres eram umas loucas, não ela, e decidiu falar com o padre. Se apresentou, disse que não era da cidade, e perguntou se ele tinha conhecimento da barbaridade que ocorria a poucos metros de sua sacristia. O padre até que vinha lhe ouvindo com boa vontade, mas quando ela falou do menino, ele fez aquela mesma expressão das mulheres, a cara murcha, os olhos baixos, e com um sorriso insosso de falsa gentileza, lhe recomendou que deixasse isso para lá, que não valia a pena tanta preocupação.
Carmelita empertigou-se. Parecia coisa combinada daquele povo. Teve que ir ao delegado, a última instância que poderia recorrer ali, e contou-lhe o caso em detalhes. Após a explanação, ele simplesmente rechaçou-a com o argumento de que não se metia em problemas de família. Já era noite quando Carmelita deixava a delegacia. O acúmulo de decepções atrapalhava seus passos, e a imagem do garoto dentro da gaiola atento aos barulhos da rua lhe desatinou de vez. Correu para a casa da madrinha, foi entrando sem bater, tropeçando em tudo, e não encontrou na sala ninguém além do menino na parte mais escura da gaiola. Trêmula, distinguiu no molho de chaves da porta a chave grosseira que abriria as grades. Quando abriu, a porta deu um pequeno rangido e Carmelita sorrindo entre lágrimas disse ao menino que estava tudo bem, e que ele não tinha mais porque ficar ali.
Na manhã seguinte, encontraram a gaiola vazia e Carmelita num charco de sangue, toda retorcida. Outra vez, a cidade estava metida no terror de meses atrás, quando o sobrinho-neto de dona Lourdes, madrinha da falecida, escapou do quartinho que vivia e feriu de morte várias pessoas. Na época sobrou até para o papagaio do padre, estimado por recitar poemas de Augusto dos Anjos e Patativa do Assaré. Até ele ser pego, porque ninguém atiraria numa criança, a cidade viveu num contínuo desassossego que agora seria retomado. Nem se falou muito de Carmelita, que fora enterrada com o mesmo rosto de surpresa de quando fora morta. Difícil ter outro assunto quando há solto na cidade um menino canibal.
segunda-feira, 1 de maio de 2006
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27 comentários:
Pois é, voltei! /// Não tenho ainda acesso a rede, entao me viro nos 30 pagando em ouro nas lan houses /// Fiz vestibular pra Letras /// Meu destino é o desemprego - até que o proximo presidente prove o contrario /// Beijo
NN
Texto muito longo, sem prejuizo da trama poderia cortar o que se segue após "até uma certa luz no rosto, algo de plácido" e antes de "Teve que ir ao delegado". Não sei se foi o costume de ler os textos ou de ver os filmes, mas o final não me deixou surpreso.
Mythus | Homepage
concordo com mythus em parte. Até o terceiro parágrafo, achei genial. Parecia ambientando em Macondo, e vi um que de gabo no texto. Muito massa. Eu esperei o menino sair voando depois q a gaiola foi aberta. Aí depois vc situa o lugar como sendo na Paraíba (pelos poetas). Pra isso, vc tinha q fazer Carmellita esperar dias pra o delegado aparecer na cidade. No interior, os delegados só ficam uns 2 dias por semana na cidade. E esse lugar é muito longe: mais de 6 horas de viagem, fica pra lá de Patos.
ailton | Homepage
Ailton, hahahaha, caba besta! Issé qué sê besta! Fluís, esse aprisionado é um meio de Aliócha, Lobisomen e Ney Latorraca, em Vamp. Final previsível, mas trama legal.
Dina
É lobisoman. Engraçado, é NN indo pra letras e eu querendo ir pra direito.
Dina
alguém deve fechar o ciclo, saindo de letras e indo pra jornalismo.
ailton
grande demais. leio depois
bRuno | Homepage
tu diminuiu o tamanho da fonte! isso é algum protesto por que eu disse q letras tava pop?
ailton
to com sono. leio depois
Bruno
acabei de ver o episódio 15 da segunda temporada de Lost. Incrivelemente, tem uma discussão sobre Literatura dentro do episódio, John Locke (aquele careca) até indica um livro pra um cara ler (livro esse que tem na ilha). Sabe quem escreveu o livro? Sabe quem o careca considera um gênio da literatura? Definitivamente, Lost está ficando cada vez mais medíocre... Ei, postei uma coisa lá no blog. Parece que ficou difícil de entender a essência do conto. Talvez vc, com a alma da música, consiga.
ailton
Patativa do Assaré não era paraibano. Assaré fica no Ceará.
*
ainda nao foi dessa vez
BRuno
e augusto dos anjos era de onde? do céu?
**
E o pior é que Ivã era o meu preferido. Pérfido, ardiloso, vixe! Não gostei do final. Esses finais em aberto do Dosta são o que me deixam mais triste. Parece que é quizila do realismo russo.
Dina
um tanto previsivel e a ultima frase explica um pouco mais do q devia. mas nao deixa de ser um bom conto
criticozinho
Dizem que os Karamazóvi são a obra maior do Dosta. Considero que a cisão de núcleos é interessante. A composição de cada personagem parte de raízes, instintos, genes diferentes, cada um herdado do pai, completo canalha. Só que, em Crime e Castigo, Ródka atravessa toda uma transição de sensações que, por si só, valem pelo livro: você vê lá comiseração, ódio, angústia, solidão, vingança, fé, compaixão, sentimentos que não são trabalhados com tal densidade nos Karamazóvi.
Dina
Capicce?
Dina
dosta é um pulha.
ailton
eu sei q julio baptista era pra ter ido no lugar de gilberto silva
bRuno
...Juro que tou rindo até agora. A melhor coisa desse post (desculpe, Luís, desse não gostei) são os comentários de Bruno, hehehehe.
Lilith
Né isso. Quanto mais assunto nadaver, mais eles comentam.
Dina
eu tenho uma dúvida: gilberto silva foi convocado pra lateral esquerda? no arsenal ele é meia! comé q pode isso?
ailton
o lateral esquerdo eh outro Gilberto, o do Bayern. O Silva do Arsenal eh o reserva de Emerson.
Bruno
é. depois eu descobri isso.
ailton
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