segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

O dia em que o sol não nasceu


Aquela sala parecia um quadro surrealista ou um trecho de um filme de arte qualquer. Espalhada pelas cadeiras e poltronas, estava a família, todos ainda de pijamas e camisolas, alguns enrolados em lençóis, mas todos envoltos no mesmo silêncio maciço, compacto, indubitável. Parecia uma sala de espera onde sequer sabiam o quê ou para quê esperavam. Discretamente, a cada cinco minutos, um deles olhava o relógio com um semblante incrédulo. Quando o pai tornou a olhar, o grande relógio da sala ostentava um nove e trinta e sete que chegava a ser imoral de tão desalentador. Àquela hora, ao invés de uma manhã quente e alegre, ainda via-se pelas frestas das janelas uma noite enorme, densa, e plena de estrelas. O sol não havia nascido.

Como líder da família e o mais velho da casa, o comandante da residência, o responsável pela condução da nau que era aquele lar, cabia ao pai uma palavra de conforto ao seus comandados, uma norma que ele, munido de toda austeridade do posto que ocupa, permitiu-se transigir, e com firme humildade, pôs-se no mesmo degrau dos circunstantes ao ir para o meio da sala, e de braços abertos, perplexo, dar voz ao pensamento geral: "o quê que tá havendo?". A mãe, trêmula, nem lhe deu ouvidos, assoou o nariz de chorosa e permaneceu agarrada ao seu terço. "E se for um eclipse?", disse Amanda, intrigada. "Não, deve ser um delírio coletivo, aposto!", ergueu-se Almir.

Quem também não se pronunciou foi Alexandre, o caçula. Só ele parecia estar gostando dessa noite que nunca acabava, ou desse inesperado atraso da aurora. Isto porque, àquela hora, caso o dia tivesse começado normalmente, já teria ocorrido uma reunião na empresa em que trabalhava onde já teriam lhe anunciado sua demissão. A noite ter prosseguido tranqüila, manhã a dentro, foi uma grande massagem nas suas combalidas esperanças.

Antes que o silêncio se refizesse, Almir pegou o controle da TV e ligou-a. Em todos os canais, plantões com jornalistas confusos e apresentadoras com cara de sono falavam da escuridão implacável que tomou conta do mundo naquele dia. Cientistas, astrônomos, físicos, em todas as emissoras especialistas patinavam em explicações contraditórias a respeito do fenômeno. Todo mundo procurava dizer com palavras diferentes que, sabe-se lá porque cargas d'água, de pólo a pólo, de hemisfério a hemisfério, o que se via no céu era uma noite profunda e uniforme. No lado de lá do mundo, onde a noite havia apenas começado, as pessoas já estavam alarmadas com a iminência de não haver um dia seguinte, coisa que cá os ocidentais já experimentavam.

"Vocês repararam? Nas últimas horas não passou um carro na rua...", observou Amanda, a voz da sensatez na casa. "Deve tá todo mundo em casa fazendo o mesmo que nós: nada", atalhou o pai, sôfrego. E de fato, as ruas do quarteirão, do bairro, da cidade inteira, eram verdadeiros rios de solidão onde as casas boiavam imóveis e caladas, emanando ondas de maus presságios para além da noite insistente. "Ué, estão ouvindo?", falou Alexandre, pela primeira vez. De repente, todos na sala atentam para um súbito rumor de passos, como o de uma grande passeata, emergindo ao longe. Ato contínuo, a família, compartilhando um temor irracional, se entreolhou e pôs-se a esperar que o rumor passasse perto da casa. Foram instantes sem respiração.

6 comentários:

Luís Venceslau disse...

eita! mas é o apocalipse em pessoa! frase que eu mais gostei: "A noite ter prosseguido tranqüila, manhã a dentro.." hehehe.. massa demais como sempre Lu! a aparente inação dos personagens me lembrou Metamorfose; tipo: como assim esse absurdo acontecendo e ninguém faz nada? agora pensei numa coisa: e teria algo a se fazer?

Gio

Luís Venceslau disse...

e eu jah ia dizer que queria que isso acontecesse em vespera de seminario! mas deixa pra lah! =~ adorei!

luci | Homepage

Luís Venceslau disse...

uma rezando. outra olhando a rua pra ver se passa carro. todos olhando o relogio a cada 5 minutos. e soh apos se passarem horas alguem tem a brilhante ideia de ligar a tv..? Como recomendou aristoteles, eh preciso ser verossimil mesmo na inverossimilhança..
o primeiro paragrafo eh maçante, sem graça. espanta leitor.
e isso tem continuacao, nao tem?

o citrico | Homepage

Luís Venceslau disse...

"papa charlie" hahaha nem lembrava mais dessa. e o link pra milena melo tb ta massa

Bruno | Homepage

Luís Venceslau disse...

Vou fazer meu comentário apenas depois do segundo capitulo. Mas antes eu gostaria de saber: qual o problema de trabalhar sem o sol? Eu mesmo adoro trabalhar de noite.

Mythus | Homepage

Luís Venceslau disse...

tb pensei nisso, mythus. mas meu palpite eh q, se o sol nao nasceu, kem danado ia se preocupar em ir pro trabalho? ainda mais ta claro q ninguem tava saindo de casa.

Bruno Surfistinha

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...