quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Além das orquídeas


Dilma entrou toda envergonhada. Sentou-se na beirada da poltrona sem desmanchar o meio sorriso, olhando os bibelôs na mesa de centro, na verdade evitando encarar já de pronto o Mário. De pé diante dela, Mário tentava expressar seu contentamento em tê-la em sua casa perguntando se havia sido difícil encontrar o prédio, se viera de carro ou de ônibus, se fazia tempo que tocava a campainha, se estava com sede. Dilma nem negava nem assentia, mexia a cabeça como se dissesse tudo bem, tudo bem, enquanto aos poucos ia arriscando olhares pela sala e pelo homem.

A moça não imaginava que ficaria tão constrangida ao chegar, mas por sorte sua tensão foi cedendo à medida que ia se agradando com o ambiente. Ao que lhe constava, Mário era solteiro e vivia sozinho, fato que tornava a arrumação exemplar do apartamento ainda mais chocante: estava tudo em seu canto, sem sinal de poeira, o chão de tacos plenamente encerado, um cheiro de limpeza no ar. E o próprio Mário não ficava por menos. Ainda tinha o cabelo molhado do banho, por sinal muito bem penteado, e o rosto barbeado impecavelmente, o que é uma forma de respeito. Isto mais o trato cerimonioso e a postura diplomática lhe imputavam um ar aprazível capaz de admirar qualquer mulher. Até Dilma.

Houve um silêncio e ambos pareciam esquecidos do objetivo da visita da moça. "Vamos lá?", perguntou Mário como se despertasse de um cochilo, e Dilma o encarou pela primeira vez, agora com um sorriso de verdadeira alegria. Dirigiram-se para o terraço do prédio, que pertencia ao Mário por ele morar ali no último andar. Lá, o homem cultivava uma coleção respeitável de orquídeas, de todos os tipos e variedades. Havia diversas prateleiras repletas, jarrinhos por toda parte e no centro um grande canteiro. Foi para vê-las que Dilma estava ali. A moça descobrira que o seu professor era um aficcionado pelas flores, e ao vê-lo num jornal percebeu que isto não se tratava de um mero gracejo da sua parte, a fim de atrair para o seu covil mulheres deslumbradas com tamanha sensibilidade.

Topou ir vê-las, entre risinhos, e pegou Mário de surpresa. Ele dissera que fazia tempo que não recebia ninguém em sua casa, que se utilizava das flores também para se aproximar das pessoas, e Dilma se comoveu. Já lá, ela tornava a encantar-se, seus sentidos estavam inundados, aquele aroma, as formas magníficas das orquídeas, as cores, Mário recitando as tipologias de cada flor, que homem é esse que não me olha as pernas nem o decote, pensava ela, embevecida. "Aceita um refresco?", e Dilma aceitou, e bebeu às goladas, ávida por mais detalhes, que Mário lhe dava com a mesma paciência inicial. Agora era o seu paladar que era massageado, até refresco ele sabe fazer, pensou ela, sem conseguir precisar que sabor era aquele.

E ficaria sem saber porque dali um tempo caiu num sono do qual não voltaria a acordar. Sorte dela não poder voltar a si, triste seria despertar e ver-se esquartejada, o professor todo sujo de sangue, seu olhar lascivo, os membros espalhados pela sala, a serra, pior ainda seria acordar um pouco depois e ver-se aos pedaços no interior da terra preta do canteiro, com os pedaços de outras incautas que por lá apareceram, servindo de adubo vigoroso para as orquídeas, uma informação omitida enquanto ainda ouviam as explanações de Mário, que não sabia se olhava para as moças pensando nas orquídeas ou se o inverso. No mais, todas morriam como Dilma, sem saber dessa outra tara daquele homem, que era a de esquartejar moças, com esmero de floricultor.


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11 comentários:

Luís Venceslau disse...

oi !! Muito legal o blog, histórias muito boas, mas não pude ler muitas ! Gostei muito ! Visite meu blog sobre Veganismo e Libertação Animal, espero que se interesse e volte mais vezes ! Beijos !!

Juliana | Homepage

Luís Venceslau disse...

minino! q conto macabro! me lembrei daquele canibal de sincity. afe! nunca mais vou lembrar de elijah wood como frodo... e eu que adorava o cara... bjins pra tu Lu! amanhã é dia de me entregar à Matrix... deseje-me sorte!

Gio | Homepage

Luís Venceslau disse...

Impecável! Tu tás cada conto mais afiado, Luís. A gente lê e lê e tenta achar algum defeito, mas só resta o deslumbramento. Reúne tudo e publica!

Dina

Luís Venceslau disse...

Fabuloso o conto, mas cá pra nós, além de psicopata, ele era gay também, não? Casa arrumada demais, perfeição demais nas roupas e no trato são quase sempre suspeitos (quando a esmola é grande até o cego desconfia). Gio também fez uma boa lembrança! Ao menos conta como ponto a versatilidade do Elijah Wood como ator :)

Mythus | Homepage

Luís Venceslau disse...

ave! inda fiquei imaginando como se esquarteja moças com esmero. =oP

PauLa

Luís Venceslau disse...

muito bom, luis.

ailton

Luís Venceslau disse...

Afe, Luís, tu escreve bem que dá até cócegas no cérebro! Tu não poderia fechar o conto de melhor maneira do que "com esmero de floricultor". Mythus: homens muito organizados, gentis etc, bem, essas são características de psicopatas!

Lala | Homepage

Luís Venceslau disse...

uma beleza, lu. surpreendente demais. no começo pensei q a mocinha era uma puta, depois, pensei num sonífero no refresco, depois vi que essa coisa de tara não tem limite não. |*

li

Luís Venceslau disse...

nunca chego aki com tempo pra ler isso tudo, mesmo pq teus textos eu gosto de ler com atencao.. mas gostei de linkar o difusora. po, soh eu lia akele negocio..

Bruno

Luís Venceslau disse...

Relembrando:
Boliche - Manaira Shopping, amanhã, 28/10/2005, às 19:00.

Mythus | Homepage

Luís Venceslau disse...

jardineiro-esquartejador! genial! é como ser pistoleiro e dono de funerária ao mesmo tempo! =~~

lu | Homepage

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