sábado, 29 de outubro de 2005

Quem tem o poder


"Os desígnios de Deus são inescrutáveis!", clamou Raimundo com dedo em riste para a sua platéia. Na verdade, era uma audiência bem modesta, um tio, uma tia e um primo, que pareceram não sofrer o pretendido efeito daquelas palavras tão bem empostadas, e acabaram ficando os três com cara de quem espera o fim da história. Como o silêncio do aspirante a pastor se prolongou, Nana propôs um aparte: "posso botar a janta?".

Não eram golpes como estes que abalavam o rapaz. Quis se submeter a essa provação e estava ali para isso mesmo, ser achacado pela dureza dos seus parentes bárbaros. Eles moravam no oco entre duas cidades, no sopé de um monte, alheios a qualquer idéia do que seja viver ou participar de uma comunidade. Para Raimundo, aquela família pagã poderia oferecer um ótimo exercício para a sua veia missionária. Chegou lá de forma tão exasperada e repentina que ao aparecer na porta o seu tio disparou: "morreu gente?".

Raimundo já estava ali havia quase um mês e tudo o que conseguira foi emagrecer. Imagine o que é pregar toda santa noite, sob a luz quente do candeeiro, e impreterivelmente de terno, um rigor de trajes que seus parentes nunca compreenderam. Compreensão havia, sim, da parte de Raimundo, que logo nas primeiras semanas teve que desistir de lhes ensinar os hinos. "Grite não que vai espantar as galinhas", disse-lhe a tia com um sorrisinho para amenizar a bronca. Raimundo também não conseguiu comovê-los lendo da forma mais apaixonante que conseguia as passagens bíblicas que já levara marcadas. Para não desfeitear o visitante, a família lhe assistia toda noite, mais para ver até onde ele iria com aquilo, disfarçando a apatia até que os bocejos os credenciavam para que pudessem se recolher.

Num daqueles dias uma dor de lado atacou Raimundo e ele foi embora dizendo que iria apenas por isto, mas que voltaria para concluir a missão que Deus lhe incumbira. Pena Raimundo não ter ficado, pois poderia ser curado ali mesmo, por algum daqueles seus rústicos parentes, bastaria que um deles lhe encostasse uma mão na região dolorida e pronto. Se Nilsinho, o primo, foi capaz de no mês passado ressuscitar uma rês que se afogara no barreiro, uma dorzinha daquelas não lhe daria grandes trabalhos.

9 comentários:

Luís Venceslau disse...

deus pode ser terapia alternativa? e quantas respostas diferentes para essa pergunta óbvia. "'Grite não que vai espantar as galinhas', disse-lhe a tia com um sorrisinho para amenizar a bronca" hahaha com odeio isso! =/ [o circo volta tímido]. vou ler o post anterior. bye =*

luci | Homepage

Luís Venceslau disse...

sim, obrigada pelos CDs! =~~ peguei hoje com monique. posso vagabundar agora com qualidade. =D ah, los hermanos em janeiro! O/

lu

Luís Venceslau disse...

esdrúxulo!

ailton | Homepage

Luís Venceslau disse...

hehehe.. eu adorei! genial como sempre. mas assim: ressuscitar? haja poder hein? bjins Lu!

Gio

Luís Venceslau disse...

O primeiro parágrafo é muito engraçado!

Breno

Luís Venceslau disse...

Será que ele gostaria de ser curado pela família pagã? Será que ele sabia daquela opção de cura? Será que ele não queria tirar umas férias daqueles inertes à sua oratória? Será que ele percebeu que já estava cansando-os? Será que ele não foi à cidade tomar conselhos e se preparar um pouco melhor? Será que é possível motivar alguém a tomar qualquer decisão?

Mythus | Homepage

Luís Venceslau disse...

Rapai... eu acho que isso de ressucitar é coisa do Diabo! o.O Tá amarrado em nome de Jesus!

Lala

Luís Venceslau disse...

clap clap clap \o/
mais nunca tinha vindo aqui, e agora tomei uma overdose dos seus textos, Luís. Mto bons! =p

monique

Luís Venceslau disse...

Você já sabia. Eu sei e você sabe que você já sabia. Que vergonha, rapaz.

Liuba

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