domingo, 22 de maio de 2005

Sem flocos


Passo após passo, firmes passos, estava quase lá. O monte não era tão íngreme. Todos aqueles agasalhos, casacos novos, dificultavam a subida, eram obstáculos necessários, e superáveis. Aquela era a noite mais fria do ano, doze graus negativos. Isso também não era obstáculo. Derrapa o sapato, esfria o nariz, o destino é pra frente, pra cima. Havia percorrido milhares de quilômetros, estava na casa do primo havia dias, dias de esperas, dias de ânsias, só por aquele momento. E as pernas doíam, a boca estava ressecada, mas nada de desistir, a vontade não falha. Nos outros anos não teve como, mas naquele ele fez o que pôde para estar ali, no inverno, onde ele sabia que já tinha nevado. Neve. Viu na TV: "Os meteorologistas dizem que a possibilidade de nevar hoje, mesmo nos lugares mais altos, é mínima". O olhar cintilou. Que felicidade. Finalmente ouvira falar de neve ali, e naquela noite, seria o dia há muito esperado. E seu primo, Sérgio, lhe acompanhava, a contragosto, pelo gosto dele, naquela subida, naquela possibilidade. Tudo porque queria porque queria ver neve, pegar, sentir, provar, para depois guardar a neve num cantinho quente e seguro, nem que fosse na memória, onde nunca derreteria.

De repente, a grama rala debaixo dos pés deles começava a se esbranquiçar, e ele apontava para baixo, apontava para cima, pedaços do céu, Sérgio, pedaços do céu, dizia, num riso chorado, de rosto vermelho, coração que batia violento. Sérgio ia mais atrás, indiferente, geada, geada, Sérgio discordava. Mas o outro apressara o passo, pulando, um pular infantil, de braços abertos, contentes, é festa, é o cume, brilhoso, o ponto mais alto, mais perto do céu. E a neve é aqui. Mas chegou, e nada de flocos caindo, não, nada, nada, quem caiu foi ele, caiu de joelhos. Olhos no céu opaco, olhos na grama de vidro, mãos na grama, nos cristais, era gelo, cadê a neve fofinha que não cai, cadê as plumas das nuvens, e Sergio só reclamava do frio, tá muito frio, mas o outro sentiu um calor, súbito. Era hora de voltar para casa, Sérgio reclamava, mas seu primo não se levantou, foi de cara no chão e ficou. Neve, será que vai nevar, ainda disse isso, suspirando, respirando pouco, e parando, Sergio correu, chegou depois. Depois da hipotermia, foi falta de costume com frio, foi falta de agasalho decente, não agüentou o coitado, nem viu a sua neve, que não caiu mesmo.

10 comentários:

Luís Venceslau disse...

"queria ver neve, pegar, sentir, provar, para depois guardar a neve num cantinho quente e seguro, nem que fosse na memória, onde nunca derreteria."
*na memória as sensações permanecem intactas. Me livrem do mal de esquecer... =D
** acho que vi aquilo de ser melhor pq tbm é uma vontade minha, Luís. Constante.
*** Já ouvi "o vento" sim. Amarante é fantástico. Letra e voz. Adoro aquele jeito "desesperado" que ele canta.
**** E você tem razão, eu tbm prefiro poesia. =D
Boa semana, Luís.
=*

Raquel | Homepage

Luís Venceslau disse...

E pensar que já há no RS uma peregrinação de POA a Caxias sempre que avisam que tal final de semana pode nevar. Vão pro Chile! Neve é jóia, mas pouquinho não tem graça. Graça é senti-la entrando no sapato, derretendo e logo em seguida virando gelo :D Brrrrrr.. Saudades de Snow Ball Fight.

Mythus | Homepage

Luís Venceslau disse...

kem nunca comeu... ah, eh melado, nao neve..

Laranja | Homepage

Luís Venceslau disse...

antigamente as pessoas queria ver o mar... agora eh neve. esse mundo tah mudando mesmo... a europa tah mt influente. soh tem gelo na europa, eh, luci? nao, mas... er...

eu nao entendi o "ajeitei teu link" nos comentarios do meu blog... hehehe e obrigada pelos parabens ;)

;*

luciola | Homepage

Luís Venceslau disse...

UHAUHAUHAUHAHUAUHAUHAUHAUH eu vi agora o "meio groupie, meio roadie" huauhauhahuahu tudo bem, eh um otimo titulo, =DDDD vou lutar para que seja assim sempre... ;DD

;*

luciola

Luís Venceslau disse...

Luís, vi isso numa comunidade do orkut:
Você já escreveu alguma história com começo, meio e fim em poucas linhas? A Andross editora está selecionando micro-contos com até 600 caracteres para serem publicados em uma antologia. Qualquer pessoa pode mandar. O site da editora é www.andross.com.br.
Espero que aproveitem a dica. Até mais!!!!

Lala Azeda

Luís Venceslau disse...

Enquanto lia só lembrava do casal que tentou escalar o Aconcágua esse ano e o homem morreu. Acho que o nome dele era Sérgio...

Breno

Luís Venceslau disse...

Faltou que eu (não) vi! Vai hoje ver Alma, então.

Liuba

Luís Venceslau disse...

coitado, morrer por causa da (falta de) neve é muita bobeira mesmo... João agora cismou que vai nevar aqui; esse negocio de morar em cidade fria tah virando a cabeça dele... ah, ontem à noite vez dez graus, e estamos em maio, hein? bjins pra tu, Lu!

Gio

Luís Venceslau disse...

Não teve como não lembrar dum certo ex-escalador q tá na França agora, praticamente no pé dos Alpes.. :/

Michelle

Morada

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