sexta-feira, 21 de janeiro de 2005
Choque pós-traumático
A casa andava num silêncio sólido. Quase se podia ouvir o tricotar aracnídeo nos cantos do teto. As portas e as janelas mantinham-se dia e noite fechadas, e o pó, que antes repousava sobre os móveis, agora estava no ar como nas câmaras egípcias.
Era de se espantar que houvesse gente vivendo ali. Lá dentro, parecia que todos haviam perdido a fala na mesma hora. Nas vezes que um passava pelo outro nos cômodos e nos corredores, nem sequer trocavam olhares. Limitavam-se a ficar nos seus quartos, abafando com lençóis um ou outro choro mais insistente. Tamanha era a desolação que Leila perdera o apetite. O fato de ninguém ter dado a mínima para o seu fastio não lhe incomodou tanto quanto a apatia da casa.
Também já estava há dias sem dormir. Inquieta com aquela modorra caótica, por vezes amanhecia revirando tudo atrás de motivo para aquilo. Naquela manhã, Leila estava no terraço quando o jornal foi jogado no jardim abandonado. Ao folheá-lo, encontrou uma foto sua ao lado de uma cruz e de um convite para uma missa. Foi assim que entendeu tudo.
sábado, 8 de janeiro de 2005
O momento da deflagração
Estavam lá os três, estáticos. Pareciam atados entre si por cordas invisíveis. Silêncio. Mesmo um diante do outro, era como se quisessem passar despercebidos na paisagem da sala, camuflados, miméticos, decorativos. Estavam lá os três, imersos numa realidade oleosa onde não havia som nem os ponteiros se moviam. Tensos. O que estava perto do telefone não tinha por quê telefonar; a que estava perto da arma não tinha como atirar; a que estava perto da porta não tinha como correr. Tudo parado naquele espaço sem tempo. Em comum, só os olhares sobressaltados. Por mais que a filha colocasse os seus olhos nos da mãe e com eles gritasse que aquilo não poderia estar acontecendo, o visitante inesperado já estava dentro, aquele havia sido o momento da deflagração, e a partir dali um seqüestro entrava em andamento.
domingo, 2 de janeiro de 2005
Não vou mais sozinho ao cinema
Fui ao cinema ver uma tragédia
Sobre um cara e o seu dilema.
Mas tanto faz, romance, comédia:
Não vou mais sozinho ao cinema.
Na bilheteria, eu espero alguém
Que não virá, é esse o problema.
O filme até pode ser bom, porém
Não venho mais só, ao cinema.
Antes vou comprar uma pipoca
E o pipoqueiro me olha com pena
Deve achar que sou um boboca
Para vir sozinho ao cinema.
Dentro, estou guardando o lugar
E esperando aquele telefonema
De alguém que não vai me ligar
Para avisar que não vem ao cinema.
Vai ser triste quando o filme acabar
E não ter com que comentar a cena
Onde o cara diz, na mesa do bar:
"Não vou mais sozinho ao cinema!"
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