domingo, 29 de julho de 2007

A vida chega


Do alto da mesma escadaria, Dirceu se viu ínfimo diante do orgulho do homem lá embaixo. Ele não o conhecia, mas sabia que uma visita logo após o almoço não seria por um bom motivo. Ao seu lado, uma menina, esta sim, não lhe era estranha, mas estava estranha, esmorecida, mortificada. De fato, nos últimos dias ela veio tendo arrancado de si tudo que lhe fazia ser quem era. Primeiro foi o escárnio da cidade, depois o desprezo das amigas, a violência da mãe, e quando não restava muito além da própria presença, seu pai lhe tirou do convívio a troco do filho que Dirceu lhe colocara na barriga.

"Faça o que quiser com ela, mas comigo ela não volta", disse o pai dela já saindo de lado, indo rápido pela pequena alameda, lá para trás do esquecimento dos quatro grandes montes. Em tantos anos de querelas e rusgas com meio mundo, Dirceu estacou sem voz naquela encruzilhada. Nessas alturas, Jacinta, a sua esposa, que não tinha visto o início da conversa, já tinha entendido tudo quando viu a veia pulada na testa do marido, a menina cabisbaixa no patamar, e o senhor já indo longe, sem olhar para trás. Por fim, Dirceu só se aliviou quando mandou chamar um dos seus imediatos para que acomodasse a menina onde desse.

Ela que ia ficar por uns tempos foi ficando, ficando, e logo virou uma das criadas. O Imediato ficou encarregado de lhe guiar naqueles primeiros dias. Assim, isentando-a de contar-lhe o passado, o Imediato deixou de ser o seu protetor para ser o seu marido. Viveram um casamento casto, porém pacífico. Dirceu lhes deu um bônus para que arrumassem as coisas da casa, e com isso colocara uma pedra em cima da história. Já estava velho, sentindo os quebrantos dos últimos momentos, e só não era plenamente feliz porque sua esposa Jacinta não tinha lhe dado um filho. Mas pelo menos a certeza de que o Imediato seria um bom pai para aquele menino lhe servia de alento. Com a sua morte, Jacinta herdou sozinha todo o dinheiro, as sociedades, as terras e o segredo, que certamente lhe exigiria mais cuidado do que qualquer outra coisa. Ela só não sabia até quando suportaria isto.
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5 comentários:

Luís Venceslau disse...

a ordem inversa é discutivel quanto à necessidade. mas a historia eh boa. quem vai achar um furo primeiro? tulio ou ailton: façam suas apostas.

Bruno Ricardo

Luís Venceslau disse...

Na verdade essa ordem inversa nem estava prevista, era pra ter sido só o primeiro. Teve esse prolongamento por causa das indagações de Tulio..

Luís

Luís Venceslau disse...

ah, ta explicado

Bruno Ricardo

Luís Venceslau disse...

"veio tendo arrancado" me parece uma construção estranha, não seria melhor apenas "tinha arrancado"? Quanto a furos, não, não. Não tenho nenhuma pretenção de ficar achando falhas nos posts dos outros. Só queria fazer um adendo: nos contratos de sociedade, só é possível "herdar" o título de sócio se houver previsão dentro do contrato social ou dentro do estatudo que criou o ente, caso haja omissão, deve ser decisão da do órgão maior da pessoa jurídica (assembléia geral, por exemplo) para decidir se aceita o novo sócio ou se diminui o capital social, como se houvesse a saída do sócio do ente. :)

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Luís Venceslau disse...

Continuando, sobre o post: agora estamos em "Bem-ti-vi Origens" hehehe quase como a série de Wolverine, mas como a cada um parece que retroage ainda mais ao passado, lembra bastante a estrutura de Memento (Amnésia, no Brasil).

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