terça-feira, 22 de agosto de 2006

No ar noir


Quinta-feira. 4 de novembro de 1954.


Aquela noite não começara bem. Quando saí pra a rua o ar estava mais espesso do que o bafo de um bêbado com dezessete dentes podres. Ao contrário de qualquer bêbado, aqueles becos profundamente malcheirosos e aquelas calçadas infames me sorriam com uma espécie de sorriso típico dos grandes primatas, que só o fazem quando desejam tomar uma sopa na caixa craniana do interlocutor.

Acelerei o passo e afundei tanto minha cabeça entre os ombros que pude sentir as clavículas rangendo nas minhas orelhas. Cacete, meu corpo todo rangia, eu já não era mais o mesmo. Meus meniscos estalavam como a mais ordinária das cadeiras de balanço que se possa conceber em todo o maldito mundo. Para completar, eu estava irremediavelmente tenso. Era tensão física apenas, eu nunca fico tenso de medo, eu nunca tenho medo, medo é pra quem faz previsões funestas do próprio futuro, e eu só tenho presente, que está sempre sob o meu controle. Mas eu não andava bem, meus músculos estavam mais rijos do que a carne de um cadáver de oito dias sob o sol do verão da Califórnia. Meu corpo reclamava, estava perdendo a batalha contra o inexorável Tempo que insiste em me acediar com a aposentadoria nas mãos. Mas aí eu digo claro que não cara vai se foder, e que vai demorar pra eu desistir de caçar criminosos. Aqui eles me conhecem, eu os conheço, é tudo um sistema. Alguns saltam muros, passam, dão risadas, outros recebem tiros de 45 na coluna dorsal, esta é a vida.

Na esquina da Rua Elm com a Avenida Stanford encontro Tabatha, a prostituta mais conhecida do pedaço. Loira, um e oitenta, dezenove anos, e uma infância já tão distante que parece nem ter acontecido. É a típica destruidora de lares, anárquica, petulante, e diabolicamente encantadora. Mascando um chiclete, é capaz de deixar figurões do Estado reduzidos a garotos babões, de quatro, mendigando um agrado insignificante. Já de longe eu vejo seus lábios naturalmente túrgidos e molhados como num cio interminável. Ela me diz oi da mesma forma vil de sempre, e eu percebo em seus olhos que sou o único no mundo capaz de lhe divertir nesta noite, além de lhe pagar a contento. Aceno com a cabeça, passo ao largo, e ela compreende que a minha companhia para esta noite está bem acomodada em meu coltre, louquinha para cuspir chumbo na cara de algum canalha qualquer...

domingo, 13 de agosto de 2006

Verde horizonte


- Veio como um barco

Cortando o mar, imenso
Vem suave, em silêncio
Sem força no mundo
Capaz de lhe parar.

Inquebrantável, eis que nos rende
Surpreende, no mais belo dos ocasos
O mais impensável dos acasos
Teimou em nos arrebatar.

Foi então que me beijou o ombro
E quando eu me virei, sem assombro
Eu já tinha os seus olhos à frente.

O passado correndo ao lado, tropeçou
O vento, as ondas, tudo, tudo parou
E desde lá o mundo ficou diferente...

sábado, 5 de agosto de 2006

Nem Pri, nem Mag


Uma adora Truffaut, e a outra me mandou ler "A insustentável leveza do ser". Uma pode conversar horas sobre as novidades da Internet, e a outra escreve cartas para os amigos, regularmente. Uma despreza todas as unanimidades, e a outra trabalha no DCE. Uma faz fanzines sobre bandas alternativas, cospe nos pseudo-modernos e exalta tudo o que é vintage, as pin-ups, flappers, e o vaudeville. A outra admitiu ter chorado vendo um crepúsculo e ter ido a uma praia de nudismo. Uma corta o próprio cabelo e a outra odeia calça jeans. Uma nunca usa emoticons e a outra posta letras dos Beatles no flog. Uma foge de aglomerações e a outra adora dar aulas de reforço. Uma parece estar 24 horas por dia vestindo uma couraça impenetrável, onde bem no fundo esconde um coração todo em carne viva. E a outra sempre te sorri como se você tivesse acabado de chegar de uma longa viagem. O único defeito das duas é serem primas, e terem descoberto tudo antes que eu me decidisse.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...