quarta-feira, 15 de junho de 2005

Solidário e suscetível

Aquilo deveria ter sido apenas uma reunião como tantas outras. Deveria ter sido apenas um comunicado de rotina, mas acabou se transformando numa situação bem extenuante. De repente a mulher lá saiu do tema e emendou uma história que aos poucos foi comprimindo a garganta de Ademar, e lhe marejando os olhos, até que ele não conseguia mais achar posição confortável na poltrona. Ele começou a simular um acesso de gripe para despistar o esfregar dos olhos, mas parou logo com medo de que sua péssima performance denunciasse ainda mais a sua inquietação. Angustiava-se também ao ver que todo mundo à sua volta mantinha-se impassível ante àquele discurso tão tocante. Enfim, não lhe restou mais o que fazer além de erguer-se, pegar suas coisas e sair do auditório da forma mais discreta que podia. Foi pra casa.

Quando chegou, a respiração ainda estava atravancada, aos tropeços. Entrou todo ressabiado, temendo que alguém lhe perguntasse o que tinha acontecido. E que resposta daria?

Ficou evitando tudo que pudesse evocar algo da história que a mulher contava. Nem adiantou. Passou o resto do dia e da noite com a imagem da mulher falando aquelas coisas com tanto sentimento, com tanta verdade e com tanta dor que mal conseguira dormir.

Pela manhã, comemorou no banheiro a notícia que lhe deram ao se levantar: a mãe de um vizinho havia morrido. Pronto, seria perfeito. Poderia juntar tudo: o pesar de hoje com a comoção de ontem, ainda a lhe engasgar. Agora sim, extravasaria tudo de uma vez, num bolo só, e ainda pareceria solidário a dor alheia. Já pensava satisfeito no quanto de lágrimas deixaria rolar a vontade, de qualquer forma a ocasião era oportuna a coisas desse tipo, e se desafogaria até do que já tinha esquecido. "Coitada, coitada...", soluçava enquanto tomava café sob os olhos perplexos da família. "É cada coisa que acontece na vida da pessoa...", e mordia o pão, desconsolado. "Mas ela já tinha 102 anos e vivia por aparelhos!", gritou sua mulher. "Eu sei! Eu sei! Estou falando do filho!", replicou ele, e passou o resto daquele dia morrendo de pena, agora do vizinho.

11 comentários:

Luís Venceslau disse...

aaaah, como isso foi legal! realmente, eu ja quis tb alguma desculpa... mas eu sempre acabo no banheiro com a toalha na boca. o foda eh que eu fico horrivel quando choro... com o rosto cheio de marcas e... sim, o texto eh legal... ={

luci

Luís Venceslau disse...

Luuuuuu!!!
beijo pra tu!
=o****

PauLa

Luís Venceslau disse...

Esse Ademar quebrou o recorde do oportunismo aferido em histórias de ficção.

Breno

Luís Venceslau disse...

"A vida como ela é", de fato...

J. A. Jr.

Luís Venceslau disse...

muito bem escrito. ótima maneira de escrever sobre o medo de expressar os sentimentos..

Laranja

Luís Venceslau disse...

que sorte essa do Ademar... e pensar que tem gente que morre engasgado de agonia...

Gio

Luís Venceslau disse...

sorte? mas foi soh um paliativo. ele vai continuar reprimido do mesmo jeito..

Laranja

Luís Venceslau disse...

Hummmm, médio, Luís. A descrição tá muito boa, mas acho que tu te reteste demais no plano sentimental.

Dina

Luís Venceslau disse...

"tu te retiveste demais..."

Patrulha Alternativa

Luís Venceslau disse...

putz, valeu, Patrulha! Modo de falar, que leva ao erro.

Dina

Luís Venceslau disse...

Nunca procurei desculpa pra chorar. Eu vi Ademar saindo do auditório, estava ao lado dele.

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