Um retornar
Por que minha mãe não chega logo? ...Pedrinho, me devolve o biscoito! ...Papai, para onde a gente vai quando morre? ...Férias na casa da Vovó de novo? ...A Marcinha é muito invejosa, comprou um vestido igual ao meu, mas eu adoro ela... ...Ainda bem que minha mãe me tirou do ballet, não agüentava mais... ...É muito chato! Já perdi duas calças, fora essas cólicas... ...Se eu o beijei? Claro que não! Ele que me beijou... ...Tenho que desligar agora, te ligo depois, tá? Te amo... ...Todos sabem que eu odeio Química, mas querem que eu faça pra Medicina... ...Surpresa, mamãe! Eu sempre soube que você adoraria ganhar um buquê... ...Não é 'Eleanor Rigby', é de 'Lovely Rita' que eu gosto... ...Mamãe, eu preciso mesmo ir no enterro do Vovô? ...Acabei sim. A gente já tinha voltado, mas agora é de vez... ...É da Clarice Lispector. Um presente pra mim mesma com meu primeiro salário do estágio... ...Não tem perigo, papai, o pessoal todo vai, e lá é super iluminado... ...O que é isso? O que tá acontecendo? Que dor é essa?
A junta médica em volta do leito de Patrícia comemorava o êxito com um entreolhar agora livre de angústia. O desfibrilador deixara marcas no tórax da moça, mas isso era o que menos importava. Não é sempre que se pode trazer de volta alguém que chega ao hospital sem pulso e quase sem atividade cerebral. "Até que a carreira médica é bem bonita...", comentou Patrícia semanas depois do acidente, pouco antes de ter alta.
:::Mais "tema único" nos links marcados com asterisco.
segunda-feira, 28 de junho de 2004
quinta-feira, 24 de junho de 2004
Pantomima
Aplauso, corte, bobo, globo, morte, sorte, trapézio, espaço, palhaço, pipoca, magia, ilusão, ilusionismo, malabarismo, Malabarismo Coletivo...
domingo, 20 de junho de 2004
Na ilha
- Um tubo de fio dental, um cortador de unhas e uma peça de roupa dela, suada, é tudo o que eu queria agora. - disse ele a um siri.
segunda-feira, 14 de junho de 2004
Além do aroma
Ninguém disse nada quando chegou. Mas o que poderiam dizer? Que ele era bem-vindo e que o amavam apesar de ter enlouquecido? Sob uma atmosfera de desconforto, faces crivadas de abnegação forçavam solidariedade. Pudera, a circunstância era nova pra todos. Não se nasce sabendo lidar com essas coisas.
No quarto, lhe doía o vazio. Era um oco que inchava de dentro para fora desde que deram por encerrada sua lavagem estomacal. Quando o levaram às pressas ao hospital não havia mais o que esconder, já não lhe restava nenhum segredo. Ficou totalmente exposto: seus dramas, suas entranhas, vísceras, vômitos, tudo. Entraram com uma câmera no seu esôfago e na sua vida como nunca o fizeram. Deu para acompanhar tudo pela telinha do doutor, que também morria de pena.
Horas depois o pai levou um copo de leite para ele. Na saída, não se segurou:
- Filho, que idéia foi essa de beber um tubo de creme rinse? - E saiu rápido, sem esperar resposta.
Dentro do cobertor, o rapaz grunhiu baixinho:
- Era o que ela usava, papai. O cheiro dela...
quinta-feira, 10 de junho de 2004
Na plataforma
De sorrisos pequenos
E gestos amenos
Fez-se o dia.
E na hora marcada
Nem quis dizer nada
Tudo doía.
No silêncio revolto,
Só um olhar solto:
Isso já serve.
No fim, a recusa:
"Adeus" não se usa,
Melhor "até breve"...
segunda-feira, 7 de junho de 2004
Raspas e restos não me interessam
A cena aconteceu há uns três, quatro anos. Eu tive que levar meu irmão para fazer um teste simulado num ginásio de um clube e fiquei lhe esperando na porta. Algumas horas depois, percebi que o encerramento das provas estava próximo ao ver chegando dos arredores vendedores de todo tipo de guloseimas, todos conhecidos da garotada do colégio.
Toca a sineta. Todos começam a entregar as provas e a ganhar a rua. Logo me vejo rodeado pela malta de moleques esganiçados que se acotovelavam em volta dos carrinhos de pipoca e raspadinhas. De cara, percebo uma coisa estranha no vendedor de raspadinhas que estava a poucos metros de mim: à medida que os garotos iam bebendo as raspadinhas e atirando os copos vazios no chão, o tal vendedor não tinha a menor timidez em ir lá, recolher os copos, dar umas batidinhas pra lhes tirar a terra e guarda-los numa cestinha, apropriada para isso.
Depois não houve como eu não tirar os olhos de cima do cara. Fiquei lá prestando atenção em todo o seu trabalho enquanto meu irmão não vinha. Havia a barra de gelo, os líquidos coloridos, o instrumento usado para tirar as raspas da pedra de gelo, os canudos pequenos... Enquanto especulava sobre a qualidade da água que virara aquela pedra, noto um outro aspecto curioso do trabalho do cara: sempre que as raspas do gelo ficavam muito pra fora do copo, ele "afofava", "aplainava" o gelo com a própria mão para que ficasse rente à borda do copinho...
Entre uma venda e outra, eis que o crime é praticado. Depois de limpar o suor da testa com a mão direita, o rapaz a enfia dentro das calças até quase a altura do cotovelo. É, colocou lá, na parte da frente mesmo, com um gesto tão abrupto que eu duvidei ter sido o seu único espectador. Até hoje não sei se coçava, balangava, arrumava, matava o tempo, brincava, ou sei lá o quê. Só sei que ele meteu a mão ali dentro da cueca, procurou alguma coisa e achou. E ainda se demorou lá, sem o mínimo esforço em parecer discreto. Antes de tirar, deu uma coçadinha de praxe na parte de trás e se preparou pra atender um garoto que se aproximou.
A seqüência que se desenrola a partir daqui se passou quase que em câmera-lenta pra mim. Primeiro, raspou o gelo. Depois, colocou as raspas no copinho. Com a mão do delito, o traste comprime com capricho o gelo no copo, coloca a essência escolhida, pega o canudo e oferece o preparado a criança bisonha. O clímax desse filme de terror foi vê-la levando o canudo até a boca e sugar e sugar com todo gosto a bebida infecta.
É por isso que cortei raspadinhas da minha vida.
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