domingo, 19 de julho de 2009

Eny

Mais uma vez voltava para casa sendo devorado por dentro por aquela sensação de só saber o que dizer depois que o momento passa. Os alemães chamam isso de Treppenwitz... Mas enfim, era assim que ela quase sempre lhe deixava, e não era de forma ríspida, às vezes um sorriso, um comentário, um silêncio, uma mudança brusca de assunto, e ele era golpeado contra suas próprias convicções. Era por vezes encarado pelos próprios preconceitos e pelos julgamentos malfeitos. Tomar um sorvete, passear na praia ou ir ao cinema quase sempre se tornavam experiências brutais de autoconhecimento, proporcionadas por uma garota que, embora fosse reconhecidamente mimada, era de uma lucidez absurda. Ela considerava inúteis tantas cerimônias, tantos arroubos servis, tantos achismos que ele tinha quase como dogmas. Diante dela, tudo isso desmoronava, revelando um mundo cheio de vaidade e insegurança.

No começo achava engraçadas aquelas suas impaciências, aquela eterna postura de quem não se agrada com nada, depois teve raiva, e por fim compreendeu que o que lhe fazia continuar próximo a ela não era um instinto masoquista, como chegou a pensar, mas sim uma necessidade de ter sempre alguém para lhe mostrar a realidade, para lhe guiar nos caminhos, lhe tirando do conformismo que aquela sua pseudo-intelectualidade proporcionava - ainda que isso lhe travasse a garganta, ainda que fosse tão desconcertante.

Saber disso foi tranqüilizador, mas não tornou convivência diferente do que sempre fora. Chamava aquilo de amizade difusa, um tipo de amizade que se realizava mais nas diferenças do que nas concordâncias, prova do quanto a amizade pode ter formas originais de se manifestar. Também não se importavam com o que estivesse muito além deles próprios: sobrenome, onde nasceram, se tinham pretendentes, o que queriam da vida, etc. Brindavam o agora, num misto de displicência e inconseqüência adolescente.

Um dia, quando perguntou a ela o que tinha de bom em preferir a sua companhia a de outras pessoas, ela soltou sem pensar: "E tem que ter algo de bom? Tem que ter um motivo?"

terça-feira, 23 de junho de 2009

Os cães

Mal amanhecera e Zaqueu já estava na frente da igreja onde fingia ser aleijado. E nem precisava carregar tanto na pantomima. Velho e esfarrapado, a muleta ao lado é o golpe de misericórdia na misericórdia alheia. Depois de anos na labuta do pedir, a velhice lhe brindava com as rugas e os tremores típicos, o que lhe dava uma boa vantagem sobre os mendigos mais jovens.

Naquela noite Zaqueu foi ao restaurante Don Giovanni garantir o seu merecido jantar. Como sempre fazia, chegou perto das onze, quando o movimento já era fraco, e foi para a porta dos fundos. Lá esperaria o senhor Giovanni, dono do restaurante, abrir a porta para jogar o lixo fora. Giovanni lhe vendia as bordas queimadas das pizzas, que eram rejeitadas pelos clientes. Como tivera um dia ruim, e Giovanni era impiedoso, Zaqueu teria que mais uma vez se bastar com pouco. “Só dois reais? Sinto muito, não vai dar pra levar tudo”, disse Giovanni, colocando as de Zaqueu num jornal. O restante ele guardou de volta pra dar aos seus cães.

Com o jantar dos cachorros embaixo do braço, Giovanni caminhava dois quarteirões até a sua casa, onde morava só com a mulher, Sofia. O casal já passava dos cinqüenta anos e não tinha filhos. Para eles nunca foi mistério que a culpa era toda de Giovanni, cujo problema, mais que interno, era físico, o que, fato bizarro, lhe impedia de consumar o casamento até então. No começo Sofia se impacientava, mas com os anos, encontrou um alento na criação dos cães. Hoje ele via com tranqüilidade que a companhia alegre dos cachorros acabou lhe ajudando a tirar certas idéias da cabeça. E realmente, depois deles, Sofia se tornara uma mulher cheia de vida, ainda mais agora que lhes ensinara a lambê-la entre as pernas.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O desaparecido

Não eram raras as vezes em que lhe vinham as lembranças desfiguradas do dia em que ficou completamente nu, dentro da igreja, no meio da missa, e não fora notado. “Já desapareci”, ele murmura, e apesar de lhe julgarem esclerosado, essas palavras estavam bem fundamentadas nos fatos mais insólitos que já lhe acometeram, e dos quais ele recorda pouca coisa.

O episódio da igreja fora o mais grandioso de uma seqüência que começara algumas noites antes. Seu Adenor, um contra-sogro de seu pai, homem vivido e de pouca conversa, pensando na sua proteção, lhe entregou um papel com uma oração cujo poder era de tornar invisível por um dia quem a proferisse. Poderia recorrer a ela, sempre que precisasse, ela não falharia, lhe garantiu o homem. Ele não acreditou muito, mas guardou o papel mesmo assim. Na noite em que toda a cidade procurava um ladrão nos matagais, ele resolveu testar, sem muita fé, se as palavras funcionariam. Mas deu certo. Andou por entre os homens, passou perto dos cães, zombou na cara do delegado, dos policiais, riu até não poder mais, e nada, era como se não existisse.

Intrigado, carecia de uma prova maior da eficácia do intento. Temeroso mas decidido, resolveu caprichar na ousadia e pulou o muro do convento. Logicamente, uma presença estranha e masculina naquele ambiente logo seria alardeada, o que não aconteceu. Ficou o dia por lá, passeou pelas capelas, violou o quarto das madres, espiou o banho das noviças, roubou fruta na cozinha, e mais uma vez, embasbacado, percebeu que não lhe percebiam.

Mal dormiu àquela noite de tão desvairado. Feitiço, magia, seja lá o que fosse, funcionava e muito bem. Foi naquela madrugada febril que lhe veio a idéia, a que selaria de vez a certeza, a que finalmente colocaria o artifício no limite. Foi no domingo seguinte, o sino batia para a missa das cinco, e ele saiu. Já na praça foi tirando os sapatos, soltou o cinto, largou a camisa, abandonou as calças e assomou na nave da igreja, nu, com o padre e a procissão dos coroinhas logo atrás.

Era a vitória final, o êxito pleno, a glória ali, com o corpo desnudo, em pleno altar, diante das beatas, invisível a todos, quiçá até a Deus. Estava tão embriagado com aquele poder que esqueceu o papelzinho com a oração dentro do bolso da calça, que a sua mãe colocou para lavar, apagando as frágeis palavras de grafite que ele não tinha decorado. Foi um trauma, uma tragédia, que o fez sumir para sempre, e colocou um lunático no seu lugar.

domingo, 12 de abril de 2009

O cantinho da gente

Entre sonhos bordados
Está a semente
Do que logo será
O cantinho da gente.

Lá vai ser tudo diferente.

Janelas abertas
Um cachorro boboca
E um tempo que não se sente.

Lá, no cantinho da gente.

Também não terá saudade
Nem outra cidade
Só a liberdade
De estar sempre perto.
Vai dar tudo certo
E daqui pra frente
Eu só vou pensar
No cantinho da gente.

domingo, 1 de março de 2009

Paixão, Loucura e Regresso de Cazuza, a voz do Amazonas ou Encanto de índia abandonada não falha

“Você ainda volta”, gritou Butúie, mostrando a Cazuza o vudu espetado. Nos dez anos em que ele foi a atração principal do maior vapor do Amazonas, a cabocla Butúie fora o antídoto de realidade para as suas noites desvairadas. Numa dessas noites, Cazuza conhecera a moça que o fez abandonar um contrato vantajoso e o amor da índia. Era uma jovem viúva, que corria o país em busca dos encantos que o casamento prematuro lhe privara. Só lá, no alto do Amazonas, é que finalmente a moça de fino trato e rosto fidalgo daria cabo de suas andanças. Entregou-se ao cantor e ele a ela, e daí para a fuga não passaram três dias. Combinaram tudo com todo o cuidado, mas ainda assim quase foram pegos. Mal tinha ele entrado no bote para cruzar para outra margem, onde estava o porto, quando Butúie dera com a bagunça de roupas no quarto e partira com seus primos em busca do rastro dele. Cazuza remava feito louco quando viu a índia com seu séquito sair da mata e surgir na margem de onde partira. Antes de tocar o porto, ele ainda ouviu grito e viu na mão dela o vudu com o espeto enorme. Com um estremecimento, Cazuza compreendeu que o boneco era ele e dali por diante estaria enredado pelo feitiço da cabocla. No porto, Cazuza encontrara a viúva, com quem voltaria a sua cidade natal. Sem saber, tomavam o destino mais alucinado das suas vidas.

Coisa que talvez a viúva já pressentisse. Via algo de irreal no alvoroço de cruzar o país de volta para a cidade dele, parecia capricho infundado, veneta sem futuro, e foi mesmo. Exatos dois anos depois da fuga, a população assistia ao espetáculo de Cazuza sendo jogado em cima de uma caminhonete, todo amarrado, para ser levado ao sanatório da capital. A sua cabeça já vinha saturada pelos dez anos de noitadas e bebedeiras a bordo, e o juízo cedeu de vez quando retomou com toda força a antiga vida de cabarés que tinha antes de ir para a Amazônia. Logo que chegou, derramou todo o dinheiro que trouxera em farras em prol dos velhos amigos e dos novos conquistados. Não tinha medida, dava tudo, as camisas de seda, de puro linho, os folheados; até os perfumes franceses ele deu às putas da cidade inteira.

A viúva com quem se casara tolerava tudo com uma serenidade incomum. Tinha lhe conhecido nessa vida, e não poderia exigir que fosse diferente. Entretanto, quando Cazuza começou a dar sinais do colapso, ela foi a primeira a desistir dele. “Não tenho obrigação de agüentar doido”, disse ela à mãe de Cazuza, antes de entrar no trem. Agora, era ela, a mãe, que era a última a permanecer vendo a caminhonete sumir na distância. Nunca mais veria o filho novamente. Naquele momento de abandono, lhe veio a lembrança do dia em que levou os filhos, ainda pequenos, para ver o Padre Cícero. Quando chegou a vez de abençoar Cazuza, o padre que chamavam de santo soltou um murmúrio que ela acabou ouvindo. “Cabeça dura”, disse o padre, e agora ela não sabia se aquelas palavras tinham sido o prenúncio de uma vida inteira, ou uma sina que ele carregava desde então. Mas palavra por palavra, as da cabocla filha de feiticeiros provariam ser mais fortes. Depois de diagnósticos apressados e exames incompletos, Cazuza foi considerado são e saiu do sanatório pela porta da frente. Levava a amizade dos médicos e na cabeça só a vontade insone de voltar para o Amazonas e reencontrar a sua índia de sempre.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Sinal dos tempos II

O tempo parou por exatos três segundos quando o primeiro semáforo instalado na cidade se soltou da base raquítica onde estava preso e atingiu em cheio a cabeça do Prefeito Iguaraci. Foi daquela forma bisonha que uma era chegara a termo diante dos olhos de toda uma cidade. Tão grande o alívio que a pancada causara que a população metera-se num estupor sem precedentes em suas histórias pessoais e coletivas. Enfim, não tinha mais volta, finalmente aqueles tempos de mandados e desmandos, de invencionices e decretos, havia se encerrado de uma vez por todas. E tudo graças àquela obra do próprio prefeito, que num de seus delírios febris, decidiu colocar um semáforo na praça de uma cidade que só tinha dois automóveis, fora o ônibus que fazia a linha para a capital.

Iguaraci se dizia um visionário, um amigo do progresso. De fato, ele era até bem moderno numas coisas, e totalmente atávico em outras. Suas modernices começavam nas duas mulheres que mantinha, sem contar uma terceira, de quem era desquitado. Mas em meio a tanto futurismo, seus arroubos despóticos e o prazer com o poder pleno lhe colocavam no mesmo patamar de um dono de mercearia. Pois foi na capital que os semáforos revelaram-se para Iguaraci como um sintoma cabal do progresso, mais do que um amontoado de prédios, mais do que o rádio. “O ordenamento do trânsito não é só uma questão de conforto: é uma necessidade dos novos tempos”, passou dias repetindo para si a frase como se fosse uma oração com poder de lhe tornar, quem sabe um dia, deputado. Após esvaziar os cofres da prefeitura, mandou instalar o bendito sinal numa das ruas que margeavam a praça da cidade, mais habitada por carroças de jumentos do que qualquer outra coisa no mundo.

No dia da inauguração, Iguaraci sonhou que estava preso num cubículo escuro, agouro que não deu ouvidos. Às exatas três horas da tarde, o prefeito encerrou o discurso e fez sinal para o rapaz responsável pelo motor a diesel que fornecia energia elétrica pela cidade. O moleque mexeu nas traquitanas, puxou as alavancas, ligou os interruptores e o semáforo não acendeu. Irado, Iguaraci correu lá no maquinário e, vendo que o diesel do motor acabara na noite anterior, tratou de improvisar outro discurso, um apêndice que fingiu ter esquecido, pontuado por achaques de desespero e muxoxos infantis. E corria de um lado para o outro, atarantado, gesticulando, pulando, querendo convencer mais a si mesmo do que a cidade de que a instalação do semáforo não tinha sido uma cagada total. Foi nesse momento que se ouviu um tinido em meio aos urros patéticos do prefeito e, como num filme mal montado, o semáforo que estava lá em cima estava agora cá embaixo, sobre a cabeça esmagada do homem com o dedo em riste. Os assessores, confusos com o fim prematuro da solenidade, só tiveram iniciativa suficiente para atalhar com o encerramento da inauguração previsto no cerimonial. “Viva o prefeito”, gritaram. E a cidade, numa salva de palmas, respondeu: “Viva!”.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Sinal dos tempos

O mundo está virando um balneário em dia de domingo: quente, lotado, barulhento, e com um cheiro irritante de protetor solar.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...