domingo, 24 de junho de 2007

Como uma vida muda

Por trás dos quatro grandes montes se ouviu o choro rouco e profundo do triste Bem-te-vi. A cidade, silente e confrangida, assistia ao espetáculo dantesco do homem levado à revelia por dois cavaleiros sem pressa nenhuma. Já se aproximavam dos limites da cidade, e aí era que o homem esperneava na poeira, soltando clamores que não retiniam nas faces estáticas que assistiam ao cortejo. Lá onde tudo começou, no miolo da cidade, na casinha amarela, ao lado da porta, estava a líder dos que nada faziam por aquele que ia arrastado, atado como um escravo quilombola levado de volta. Sem pensar, Soledade dera abrigo àquele homem que chegara ali em trapos, prostrado, e foi direto bater em sua porta. Vinha faminto, assustado, mas com a atenção de Soledade logo se erguera. Voltara a parecer um homem de fato, limpo, comendo na mesa, capaz de sorrir, e assobiar. Antes que voltasse a ter voz pra falar quem era, Soledade o batizou de Bem-te-vi. Os vizinhos se compadeceram, e de pronto simpatizaram com o rapaz simples e de fala pouca, com um olhar de quem não teve família, e com um assobio, firme e acertado, igualzinho ao de um bem-te-vi. Entretanto, temeram por Soledade, o marido estava viajando, se chegasse não entenderia a presença daquele homem em sua casa. Ela, com olhar baixo, lhes dizia que não se preocupassem, Firmino estava na capital, e só voltaria dali a dois meses depois de tratar dos seus negócios, e de visitar suas velhas conhecidas da noite no cais.

Passado um mês, parecia que Bem-te-vi tinha nascido e se criado ali. Virara um faz tudo na cidade, era herói dos meninos e candidato a pai postiço dos que não tinham um de verdade. Os mais velhos o viam como uma boa alma, e as mulheres, casadas e solteiras, desfraldavam suspiros sempre que o homem com jeito de diácono prosélito passava sem devolver os olhares. Só Soledade que não comungava desses pensamentos. Naquelas noites quietas, Bem-te-vi assobiava para ela canções que ninguém mais lembrava, e outras que ele inventava na hora, deixando a menina com um sorriso cheio de lágrimas nos olhos. Entre um silêncio e outro, Bem-te-vi, ainda com uma voz atravancada, chegou a lhe falar que vivera num inferno de solidão, e que por ele ficaria na cidade para sempre. Soledade, fascinada a ponto perder a fala, ia acreditando em tudo, sem perguntar nada ao homem trêmulo de gratidão.

Mas naquele dia, os dois cavaleiros sem rosto vieram e o apanharam. Soledade acudiu depressa e deu de cara na certeza que os dois traziam. Estavam há muito em busca daquele homem que fugira do asilo dos leprosos, que ficava no alto de um dos montes, e do qual só se via um pedaço da muralha cinzenta. Antes que terminasse de ouvi-los, Soledade lembrou do feito dos trapos que Bem-te-vi vestia quando chegou: parecia roupa de preso. Ligeira, a verdade foi correndo de boca a orelha e todos tinham os rostos retorcidos pela possibilidade da cidade ter sido apodrecida toda de uma vez. Quando os gritos de Bem-te-vi cessaram entre as árvores, todos entraram em sua casas aliviados com a partida do impuro. Menos Soledade, que ainda naquela tarde recebeu um beijo na testa do senhor seu marido, que voltara com as mesmas poucas palavras e a distância costumeira. Era a sua vida de volta, sem fôlego e sem vontades, a não ser por uma coisa: dali em diante, só dormiria bem se encontrasse no vento pedaços de assobio trazidos lá do asilo, para poder sonhar com aqueles dois meses em que foi verdadeiramente feliz.

sábado, 9 de junho de 2007

Quem sou eu

Talvez uma farsa incompleta
E convincente
Um intervalo, um desvio
Ou uma lacuna
Talvez um tratante
Um embuste
Um nó sem arremate
Um disparate, linha tênue
Corda bamba, lá em cima

- É bem mais do que parece
E bem menos do que se imagina.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...