quinta-feira, 15 de março de 2007

A terra de Vitorino

Na sala, Vitorino velava, sozinho, o corpo do filho. A guerra lenta e de poucos tiros já se arrastava havia vinte e sete anos, e pelo jeito, Paulo, menino nascido e criado no meio do conflito, não seria a última baixa. Ainda havia ele, Vitorino, e a cada filho seu que morria, a cada irmão que caía, a cada mulher atraiçoada, ele aferrava-se ainda mais ao juramento que já esquecera. Após anos e anos vendo a família sendo diminuída, Vitorino nem notava mais a própria dor, era como barulho de grilo ou de relógio à noite, com o tempo você se acostuma e dorme. Aos poucos ele se tornava um poço de ódio em que não havia mais espaço para pesares. E agora, sozinho na casa, Vitorino era finalmente um animal desvinculado de quase tudo que se possa chamar humano. Era um animal em prontidão, desapegado do que fora um dia, sem amores, lembranças ou aspirações. Antes de ser dominado pela sanha cega que lhe arrancou as memórias, Vitorino sonhou muito com a sua avó e com algo que ela costumava dizer: "Nessa vida ninguém tem nada, a gente só toma conta". Ainda bem que ela não viveu para ver que ele rejeitou o ensinamento a troco de um futuro tão incerto. Pois Vitorino fincou a família ali, disposto a não entregar os pontos jamais. Jurou defender dos invasores aqueles tantos hectares que estavam com eles desde antes da chegada dos holandeses, nem que isso significasse o extermínio de toda a linhagem.

À medida que a guerra recrudescia, a terra, defendida com tanto ardor, vinha sendo descuidada, posta a parte de seus afetos em favor do desejo de esmagar o outro lado, e agora, o que no princípio era um terreno dadivoso, se tornara uma propriedade inútil e estéril. Os animais tinham sumido, só as ervas daninhas se proliferavam, e Vitorino, lá dentro da casa, com o rifle na mão, esperava os rivais virem tomar posse, para que finalmente pudesse descarregar neles a sua última cartucheira, com todo o gozo de satisfação acumulado de uma descendência inteira impedida de nascer por causa do flagelo. Mas eles não vieram, e não vieram nunca. Só muitos anos depois, quando um povoado se formava do outro lado vale, colonos encontraram dentro de um casebre um esqueleto enroscado numa espingarda. "Vamos embora daqui, essa terra deve ser ruim demais", disse o mais velho.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...