domingo, 24 de setembro de 2006

O feitiço de Passi


Contrariando toda a idéia de realidade, do que é tangível, do que é possível ou não, ele estava dentro do quadro. Não é algo que se possa compreender assim, de pronto, ele teve que se dar um tempo para olhar em volta, sentir o ambiente, e ver que, por algum artifício de natureza ignorada, ele não estava mais naquela galeria, mas sim na saleta retratada pelo quadro que contemplava instantes antes. O primeiro minuto foi de paralisia, perscrutava tudo com os olhos, procurando em volta de si rastros do museu que chegara minutos atrás. Logo que se deu conta do silêncio e daquele cheiro de mofo ao invés do purificador de ar, não pôde mais relutar e, já sentindo na língua o amargor do pânico, só lhe restou identificar aquele como sendo um outro lugar.

Trêmulo, embotado por uma vertigem surda, andou com cuidado pela sala tentando não tocar em nada nem fazer barulho, temendo algo que nem imaginava. Se aproximou da porta que estava aberta e quando saiu teve um acesso de riso, puro nervosismo. Tudo o que havia em torno da casa era um imenso campo, plano, verde, uniforme. Procurou por buzinas, por vozes, motores, mas tudo que lhe chegava aos ouvidos eram as leves lufadas intermitentes. Até onde a vista alcançava, não havia um mínimo vestígio de civilização, não havia sequer nada que se movesse, uma vaca, ou um pássaro, nem nada parado, como uma árvore. Era só a casa, com um céu desbotado em cima, rodeada por aquela imensa estepe enfadonha. Contornou o casebre e se defrontou com a mesma paisagem desoladora. Não ia ser fácil sair dali, pensou.

Já não se preocupava como havia chegado ali ou como o museu em que estava se transformara naquele lugar esquisito. Só queria saber onde estava e como poderia voltar para casa o mais rápido possível. Na esperança de ter essas questões resolvidas, voltou para dentro da casa e pôs-se a esperar quem quer que morasse ali, na certa alguém não muito sociável, de gosto e hábitos um tanto exóticos. Deduziu isso pela mobília muito rústica, quase medieval, com panelas de ferro penduradas no teto, e um catre esfarrapado num canto da sala. Mas fosse quem fosse, a pessoa que vivia ali gostava de artes, de pintura, pois havia uma parede repleta de pequenos quadros. Aproximou-se e não encontrou figuras humanas em nenhum deles, todos retratavam um mesmo motivo: era sempre um quarto suntuoso, com um tocador ao fundo, e uma cama com um dossel esplêndido. Um detalhe lhe chamou atenção num daqueles quadros. Era um sapatinho, esquecido no meio do quarto, e pelo seu feitio imaginou que ele poderia ser de uma princesa, criança ainda, vivendo entre os rigores da pompa e os arroubos infantis. Um sorriso involuntário se apoderou do seu rosto e quando este se desfez, ele percebeu que não estava mais na velha choupana, mas num grande aposento que tinha tudo para ser de um castelo. Olhou para baixo e apanhou o sapatinho que estava perto dos seus pés.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...