segunda-feira, 22 de maio de 2006

A última véspera


Dezembro veio como um cavalo rampante, destrambelhado como o rompante de um trem chegando na estação. Por cima dos canaviais, chegara àquela casa o vento da sua desgraça, trazendo os ecos de todos os maus agouros acumulados em todos aqueles anos de letargo. Enquanto as caravanas de ex-vizinhos passavam defronte à varanda, na sala engendrava-se o plano de suas vidas. Mas por ver a vida de perto desde cedo, a mãe não conseguia embarcar naquela vã obstinação. Com horror, via que eles levariam a termo toda aquela resignação: a alucinação do pai encontrara terreno fértil na impulsividade dos filhos.

A folhinha dos dias parara no dia em que chegara a notícia de que, pelo bem dos negócios da usina, a família teria algumas semanas para se relocar, deixando o terreno livre para o trabalho das máquinas. Foi assim que o tempo se acabou e não houve mais vida. Tudo convertera-se numa espera insone, só falava sobre o dia, só se comia pensando no dia, só se olhavam com vontade de que esse último dia do ultimato não chegasse nunca.

No entardecer da véspera, a milícia começava a se reunir ao longe. Isso porque ao amanhecer tudo já deveria estar pronto para que se coibisse qualquer oposição à decisão da usina. Contra a luz do crepúsculo trêmulo, a visão dos arautos da guerra foi o sinal definitivo para a mãe. Munida com sua autoridade tácita, e de posse de uns tantos sentimentos extremos, teve lucidez para reconhecer que só cabia a ela o ato magnânimo do sacrifício, e como toda a paz do seu espírito, pôde realizar o seu intento mais extremo: distribuiu bolinhas de estricnina nos pratos da janta, e encerrou o assunto sem que houvesse um disparo.

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Carne de pescoço

No momento que viu a gaiola com o menino dentro, Carmelita esqueceu-se de tudo. Esqueceu das mais de seis horas de viagem, do ônibus caquético que lhe trouxera até ali, de sua madrinha que não via havia quase trinta anos, de tudo. A madrinha, indiferente, nem percebeu a consternação em que Carmelita se meteu ao dar com os olhos diáfanos do menino por trás das grades. Ele não tinha o rosto retorcido e aziago dos encarcerados; tinha, sim, traços tão ternos e um semblante tão amável que congestionaram Carmelita como toda a comoção de seus instintos maternais. Apesar da condição, Carmelita não via nele rastros de tristeza, pelo contrário, trazia até uma certa luz no rosto, algo de plácido. Embotada nas palavras, Carmelita perguntou o que significava aquilo e a sua madrinha sem tirar os olhos do bastidor lhe respondeu simplesmente que "era assim mesmo". A crueza da resposta lhe devolveu a razão, e Carmelita quis aprofundar o assunto. Com candura, sua madrinha foi lhe guiando até a porta, recomendando descanso da viagem sofrida e dizendo que depois conversariam mais.

Carmelita intrigou-se mais com a forma como a sua madrinha fugiu da explicação do que propriamente com o menino enjaulado. Já no hotel, perturbou-se quando lembrou de ter visto pratos, cascas e migalhas no chão da gaiola, e ela compreendeu que nem pra comer ele saía dali. Passaram-se alguns dias e Carmelita continuou encontrando o menino dentro gaiola nas vezes que retornou à casa da madrinha. "Mas um castigo não pode durar tanto!", pensava. Nesses dias que se seguiram, viu muita gente passar pela casa de sua madrinha sem que ninguém fizesse menção à presença do menino, sem que sequer olhassem para a gaiola no canto da sala. Depois de algum tempo, e de tanto a sua madrinha evitar o assunto, Carmelita passou a abordar as vizinhas mais freqüentadoras, que lhe davam as mesmas respostas, que "era assim mesmo, minha filha, deixe ele". Depois de algumas noites sem descanso, com a visão torturante dos olhos infantis atrás daquelas grades, Carmelita concluiu que aquelas mulheres eram umas loucas, não ela, e decidiu falar com o padre. Se apresentou, disse que não era da cidade, e perguntou se ele tinha conhecimento da barbaridade que ocorria a poucos metros de sua sacristia. O padre até que vinha lhe ouvindo com boa vontade, mas quando ela falou do menino, ele fez aquela mesma expressão das mulheres, a cara murcha, os olhos baixos, e com um sorriso insosso de falsa gentileza, lhe recomendou que deixasse isso para lá, que não valia a pena tanta preocupação.

Carmelita empertigou-se. Parecia coisa combinada daquele povo. Teve que ir ao delegado, a última instância que poderia recorrer ali, e contou-lhe o caso em detalhes. Após a explanação, ele simplesmente rechaçou-a com o argumento de que não se metia em problemas de família. Já era noite quando Carmelita deixava a delegacia. O acúmulo de decepções atrapalhava seus passos, e a imagem do garoto dentro da gaiola atento aos barulhos da rua lhe desatinou de vez. Correu para a casa da madrinha, foi entrando sem bater, tropeçando em tudo, e não encontrou na sala ninguém além do menino na parte mais escura da gaiola. Trêmula, distinguiu no molho de chaves da porta a chave grosseira que abriria as grades. Quando abriu, a porta deu um pequeno rangido e Carmelita sorrindo entre lágrimas disse ao menino que estava tudo bem, e que ele não tinha mais porque ficar ali.

Na manhã seguinte, encontraram a gaiola vazia e Carmelita num charco de sangue, toda retorcida. Outra vez, a cidade estava metida no terror de meses atrás, quando o sobrinho-neto de dona Lourdes, madrinha da falecida, escapou do quartinho que vivia e feriu de morte várias pessoas. Na época sobrou até para o papagaio do padre, estimado por recitar poemas de Augusto dos Anjos e Patativa do Assaré. Até ele ser pego, porque ninguém atiraria numa criança, a cidade viveu num contínuo desassossego que agora seria retomado. Nem se falou muito de Carmelita, que fora enterrada com o mesmo rosto de surpresa de quando fora morta. Difícil ter outro assunto quando há solto na cidade um menino canibal.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...