segunda-feira, 21 de março de 2005

Enfim, a vida


Talvez só te reste uns três anos de vida. O abatimento em que caiu após ouvir e interpretar cada palavra dessa frase insalubre quase o fez crer que só lhe restavam três minutos de vida. A imagem do médico pronunciando aquelas palavras ficou se repetindo debaixo das pálpebras cada vez mais lentamente, e a cada nova repetição o traçado labial ia ganhando um contorno cada vez mais vil, debochado, insuportável. Nem era por causa da compaixão profissional do médico. Doía por já ser caso pensado, coisa decidida, inapelável.

Saiu a passos vacilantes. Seriam apenas três anos de vida. Apenas três anos. Três anos. Três. Apenas. Era possível que dali a 36 meses estivesse sendo levado às pressas a uma urgência, num último esforço ante o irremediável. Seria a última demonstração de afeto e consideração, tentativa incauta de amenizar a aspereza dos seus instantes finais. Foi só um mal passageiro, coisa boba, era o que ensaiava para dizer a mulher quando chegasse em casa e escondesse o exame.

A primeira coisa que fez foi voltar à cidade onde vivera na infância. Procurou uma antiga vizinha que, morta de rir, recebeu dele as desculpas por um certo roubo de calcinhas do seu varal quarenta e tantos anos antes. Na volta, fez pipa com o filho; reviu "Marcelino, pão e vinho" oito vezes e se permitiu chorar em todas; participou de tudo quanto é amigo secreto e foi fazer aulas de francês. Morreu 30 meses depois da infausta consulta, sem jamais ter dito eu te amo a mulher.

19 comentários:

Luís Venceslau disse...

Luís e seus contos trágicos! Estava comentando a pouco que não tenho muita paciência de ler todos os comentários do seu blog porque a maioria repete "Luís, adorei!". =P // En tous cas, esse também é muito bom. Fazer o quê? Pelo menos serei o primeiro: Luís, adorei!

Breno

Luís Venceslau disse...

...a aspereza dos seus os instantes finais. // Esse "os" existe?

Patrulha B

Luís Venceslau disse...

Não seria "Marcelino, Pão e Vinho"?

Patrulha *

Luís Venceslau disse...

Agradecemos a colaboração.

Errata

Luís Venceslau disse...

De fato não devia amá-la. Sentindo que lhe restam poucos dias de vida, ele tenta recuperar a infância e seus delitos, investe os últimos momentos de pai, busca tudo o que lhe traga algum sentimento de realização e ainda tenta afastar a esposa da sua realidade fatal. De fato não devia amá-la, mesmo.

Mythus | Homepage

Luís Venceslau disse...

"sem jamais ter dito eu te amo à mulher". (Como faz pra colocar negrito nessa birosca?)

Patrulha Alternativa

Luís Venceslau disse...

Não, não. Não está entre os melhores... Adjetivos demais, muito cuidado com o vocabulário, muita escolha acaba com a espontaneidade. Ah, e tem crase aqui também: "era o que ensaiava para dizer à mulher..."

Lilith

Luís Venceslau disse...

Chaaaaaata, eu sei. Pardonnez moi.

Lilith

Luís Venceslau disse...

Patrulha Alternativa: Use tags de html. ele não aceita todo tipo de tag, mas.. é um começo.

Mythus

Luís Venceslau disse...

sublinhado é um mistério pra mim

Mythus

Luís Venceslau disse...

É como Mythus diz, eu acho que esse cara não amava essa mulher mesmo não. Vai ver ela era uma figura muito ranzinza. Imagino o olhar dela quando ele chegou da consulta...

Zabella

Luís Venceslau disse...

A mulher agora vai ser julgada, meu Deus... Coitada, vai perder o marido, ele nem vai ter tempo de dizer que a ama, uma vez que vai partir uns poucos meses antes que o previsto... E ainda vai ser julgada. Faz isso não.

Lilith

Luís Venceslau disse...

A mulher agora vai ser julgada, meu Deus... Coitada, vai perder o marido, ele nem vai ter tempo de dizer que a ama, uma vez que vai partir uns poucos meses antes que o previsto... E ainda vai ser julgada. Faz isso não.

Lilith

Luís Venceslau disse...

porra, um texto maravilhoso desses e vcs preocupados com crase??? luis, nao lembro de escrito teu melhor que esse. a descrição das impressoes do cara apos o diagnostico... excelente. soh nao gostei do final, piegas ateh o cóccix.

o cítrico

Luís Venceslau disse...

Hummm.. a maioria das pessoas consegue superar as expectativas dos médicos. Pq o paciente em tela, apesar d ter buscado satisfazer seus todos os seus últimos desejos não prolongou a vida, e ainda perdeu? Luís, acho q Vc desligou os aparelhos. =P

Michelle

Luís Venceslau disse...

achei muito bom o conto!! gostei muito do desenvolvimento, das descrições... mas n gostei muito do final, e nem foi o fato dele n ter dito à mulher q a amava, mas acho que a forma mesmo...

raquel | Homepage

Luís Venceslau disse...

pois eu acho que ele amava a mulher sim; é que "eu te amo" às vezes é um troço difícil de se dizer... luís, minino! que saudade de tu! como vai o Gabo? ontem terminei de ler "O Apanhador no Campo de Centeio" e lembrei de tu! queria nossas discussões literárias de volta... bjins!

Gio, desculpando-se pelo sumiço.

Luís Venceslau disse...

pera, pera que eu nao sei o que comentar. alias, eu tinha umas coisas, mas, quando vi o "morreu sem dizer eu te amo a mulher"... ai, meu filho, me tocou geral ;P acho que eu faria isso tb. nao dizer que nao amo! nao contar do exame. alias, o que interessa? interessa que ele se permitiu chorar ;~~ nao poderia ter sido melhor...

luciana | Homepage

Luís Venceslau disse...

O miniconto é excelente!

Dina

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