“Você ainda volta”, gritou Butúie, mostrando a Cazuza o vudu espetado. Nos dez anos em que ele foi a atração principal do maior vapor do Amazonas, a cabocla Butúie fora o antídoto de realidade para as suas noites desvairadas. Numa dessas noites, Cazuza conhecera a moça que o fez abandonar um contrato vantajoso e o amor da índia. Era uma jovem viúva, que corria o país em busca dos encantos que o casamento prematuro lhe privara. Só lá, no alto do Amazonas, é que finalmente a moça de fino trato e rosto fidalgo daria cabo de suas andanças. Entregou-se ao cantor e ele a ela, e daí para a fuga não passaram três dias. Combinaram tudo com todo o cuidado, mas ainda assim quase foram pegos. Mal tinha ele entrado no bote para cruzar para outra margem, onde estava o porto, quando Butúie dera com a bagunça de roupas no quarto e partira com seus primos em busca do rastro dele. Cazuza remava feito louco quando viu a índia com seu séquito sair da mata e surgir na margem de onde partira. Antes de tocar o porto, ele ainda ouviu grito e viu na mão dela o vudu com o espeto enorme. Com um estremecimento, Cazuza compreendeu que o boneco era ele e dali por diante estaria enredado pelo feitiço da cabocla. No porto, Cazuza encontrara a viúva, com quem voltaria a sua cidade natal. Sem saber, tomavam o destino mais alucinado das suas vidas.
Coisa que talvez a viúva já pressentisse. Via algo de irreal no alvoroço de cruzar o país de volta para a cidade dele, parecia capricho infundado, veneta sem futuro, e foi mesmo. Exatos dois anos depois da fuga, a população assistia ao espetáculo de Cazuza sendo jogado em cima de uma caminhonete, todo amarrado, para ser levado ao sanatório da capital. A sua cabeça já vinha saturada pelos dez anos de noitadas e bebedeiras a bordo, e o juízo cedeu de vez quando retomou com toda força a antiga vida de cabarés que tinha antes de ir para a Amazônia. Logo que chegou, derramou todo o dinheiro que trouxera em farras em prol dos velhos amigos e dos novos conquistados. Não tinha medida, dava tudo, as camisas de seda, de puro linho, os folheados; até os perfumes franceses ele deu às putas da cidade inteira.
A viúva com quem se casara tolerava tudo com uma serenidade incomum. Tinha lhe conhecido nessa vida, e não poderia exigir que fosse diferente. Entretanto, quando Cazuza começou a dar sinais do colapso, ela foi a primeira a desistir dele. “Não tenho obrigação de agüentar doido”, disse ela à mãe de Cazuza, antes de entrar no trem. Agora, era ela, a mãe, que era a última a permanecer vendo a caminhonete sumir na distância. Nunca mais veria o filho novamente. Naquele momento de abandono, lhe veio a lembrança do dia em que levou os filhos, ainda pequenos, para ver o Padre Cícero. Quando chegou a vez de abençoar Cazuza, o padre que chamavam de santo soltou um murmúrio que ela acabou ouvindo. “Cabeça dura”, disse o padre, e agora ela não sabia se aquelas palavras tinham sido o prenúncio de uma vida inteira, ou uma sina que ele carregava desde então. Mas palavra por palavra, as da cabocla filha de feiticeiros provariam ser mais fortes. Depois de diagnósticos apressados e exames incompletos, Cazuza foi considerado são e saiu do sanatório pela porta da frente. Levava a amizade dos médicos e na cabeça só a vontade insone de voltar para o Amazonas e reencontrar a sua índia de sempre.